Comentário

Nuno Gaspar Oliveira

A floresta num contexto de Economia de Base Natural

Numa fase crítica de construção de um modelo capaz de aumentar a nossa resiliência a desafios estruturais, que vão desde a saúde pública às alterações climáticas, a Economia de Base Natural não pode continuar a ser considerada a ideia radical, mas a via para um progresso inclusivo e regenerativo.

Numa época em que 99% das empresas e instituições reguladoras falam em ‘sustentabilidade’, onde existem normas, políticas públicas, indicadores internacionais e uma pilha interminável de relatórios de sustentabilidade de entidades de todos os sectores possíveis e imaginários, seria de esperar que muitos dos nossos problemas associados à degradação dos ecossistemas e às alterações climáticas estivessem resolvidos ou em boas vias de o serem. Mas não, não é, de todo, isso que verificamos.

De Glasgow saiu um murmúrio, porventura engasgado pelos fumos das centrais de carvão, que anuncia o tão esperado reconhecimento dos ecossistemas florestais como soluções para a inevitável adaptação climática, embora ainda com muitas condicionantes e algumas ‘armadilhas’ particularmente críticas para Portugal. Mas disso falaremos noutro ‘capítulo’….

Tudo se vai mantendo como dantes…?

Infelizmente, parece que estamos presos a um paradigma obcecado com o crescimento e que nos diz que as economias vão ser economias e que empresas são empresas e vão continuar a ser empresas, vão ter no seu modelo de negócio a geração de riqueza, de várias formas, sendo uma delas a geração de lucro para os acionistas que investiram capital financeiro. Já a remuneração dos ‘acionistas’ que entraram com capital social e ecológico/ambiental tem andado pelas ruas da amargura…

Mas será que tem de continuar a ser assim? Estamos em plena fase crítica da reconstrução de um modelo social e económico que consiga responder com o aumento da nossa capacidade de recuperação e resiliência gerada pelos impactes telúricos da pandemia COVID-19.

Este é o momento-chave onde a decisão se divide: voltar ao que tínhamos e, à boa maneira americana, apostar no ‘throwing money at the problems’ (atirar dinheiro para cima dos problemas) e esperar que os estados e as empresas criem as condições para uma nova vaga de crescimento, utilizando as mesmas ferramentas que já conhecem, ou tentamos uma via alternativa, como é o caso do comércio de emissões que, honestamente, só me faz lembrar aquele jogo infantil do ‘passa-a-morte-e-não-ao-mesmo’. A outra hipótese é a via do progresso inclusivo e regenerativo, onde o bem-estar e as condições de vida são recuperadas com soluções e investimentos que tanto ajudam as pessoas e as comunidades como o planeta, o clima e a biodiversidade.

Estranho que esta última opção, a de criar modelos onde podemos progredir sem destruir a biodiversidade e os ecossistemas do planeta e os sistemas ambientais e ecológicos que nos sustem, seja a ideia radical.

A Economia de Base Natural

Surge aqui a tal ideia radical: a Economia (de base) Natural. Esta podia ser simplesmente ‘economia’, se esta realmente integrasse o valor da Natureza e dos ecossistemas que nos suportam, e medisse criteriosamente o impacte real das nossas atividades sobre os recursos naturais, o clima e a biodiversidade.

Ou seja, uma economia que desse mais destaque a soluções de regeneração sistémica e inovação de base biológica, assim como à capacitação de pessoas, comunidades e empreendedores que desejassem criar bens-comuns em vez de se entusiasmar com passeios de bilionários ao espaço, criptomoedas com uma pegada de carbono dantesca ou uma economia que faz ‘vista grossa’ aos cerca de 700 mil milhões de dólares norte-americanos que são investidos em atividades, produtos e serviços que contribuem para as alterações climáticas e degradação dos ecossistemas e dos serviços que estes nos prestam, ao mesmo tempo que entra em sobreaquecimento com o mercado de troca de licenças de emissões, que resultam inevitavelmente em que nem uma parte por milhão (ppm) de carbono seja retirado da atmosfera.

Em síntese a Economia de Base Natural será uma economia:

  • … inspirada na Natureza, que se suporte em estratégias de inovação e desenvolvimento baseadas na forma como a natureza cria, resolve, elimina e recria problemas e soluções, orientada para a conceção de produtos e serviços que criam valor partilhado entre quem os gera e quem deles beneficia;
  • … assente numa visão integradora de dois conceitos-chave, capital natural e os serviços dos ecossistemas, com base na valoração socioecológica e económica de bens e serviços da Natureza e a sua integração na melhoria do bem-estar e das condições de vida;
  • … orientada para o futuro, que compreende realisticamente os riscos ecológicos e climáticos e que perceba que o planeamento a curto, médio e longo prazo é crucial para gerir a exposição aos mesmos, assim como das medidas de adaptação dos planos, para que, desta forma, possa apoiar a evolução dos modelos de negócio.

As vantagens de uma Economia Natural parecem ser evidentes, e podem passar por uma revolução na teoria dos pilares, que já teve o seu momento de glória, mas que nos falhou por não desagregar crescimento económico de degradação ambiental. Está na hora de passarmos de pilares a dimensões, frequentemente híbridas e por vezes confusas, mas que representem os fatores críticos para o nosso caminho pela via da recuperação e resiliência. Em parte, esta via pode passar por:

  • Considerar que os serviços da biodiversidade e dos ecossistemas tornam possível traçar planos de investimento alternativos mais alinhados com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e as políticas do ‘Green Deal’;
  • Apostar na concretização de mais oportunidades de diversificação do investimento na conservação, restauro ou reconversão, o que pode mesmo levar a novos modelos económicos, como a criação de créditos para serviços de ecossistemas, como bancos de conservação, pagamentos de sistemas de serviços de ecossistemas, ou créditos de água e carbono;
  • Olhar para a Bioeconomia como um fator de renascimento de indústrias clássicas num contexto de século XXI, ou da emergência de sectores baseados na gestão criteriosa e não destrutiva dos recursos naturais. Esta forma de gerir pode criar multitudes de novos serviços e produtos, desde redes de zonas húmidas que funcionam como biorreatores e fito-ETARs, ao desenvolvimento de novas fibras têxteis e materiais de construção, a alternativas para a inovação na indústria alimentar, cosmética, farmacêutica, agrícola e de base biotecnológica, entre muitas outras opções;
  • Reconhecer que, mais do que descarbonizar (algo que andamos a tentar fazer desde ‘Quioto’ com pouco sucesso e que não se vai resolver com ‘Glasgow’), é preciso criar opções de ‘positividade climática’, baseadas nas potencialidades dos sistemas ecológicos que permitem às organizações adaptarem-se e prepararem-se adequadamente para os impactes das alterações climáticas e criarem processos adequados de adaptação e mitigação de riscos baseados em Soluções de Base Natural que simultaneamente protegem a cadeia de valor e criam opções para novos produtos e serviços.

Evoluir, naturalmente

Em tempos passou-se a ideia de que somos um país de floresta, cheio de bosques frondosos com esquilos a saltitar desde os Pirenéus a Alcochete, ou onde os cumes das serras seriam para florestar com plantações altaneiras, sem que nada de mal lhes pudesse acontecer. Ora, a realidade real pouco se rala com as nossas efabulações e fantasias e, ano após ano, vem sendo demonstrado que a nossa maneira impositiva de desenhar ecossistemas florestais tem falhado.

Hoje são as AIGP (Áreas Integradas de Gestão da Paisagem), mas já foram as ZIF (Zonas de Intervenção Florestal) e há de ser outra coisa qualquer daqui a 10 anos se insistirmos na mesma fórmula que tem tido sempre, no meu entender, um ponto de falha supercrítica: é que não somos um país de floresta, mas sim um país de mosaico!

E é nesse mosaico de capital natural, salpicado com capital social e patrimonial e enriquecido com capital tecnológico, cultural e económico que tudo acontece. É nas manchas de bosques com galerias ripícolas, com matrizes agrícolas e plantações florestais que a biodiversidade acontece, que os ecossistemas mais entregam em termos de serviços de provisão e regulação. É nos corredores ecológicos, nas bermas de estradas e caminhos rurais, nos mal-amados incultos, matagais, ermos e brejos que muita da nossa riqueza única existe.

E é nesta encruzilhada em que nos encontramos; estamos destinados a reconhecer que a Economia de Base Natural acontece no intervalo de todos os planos que fazemos para a reduzir ao absurdo, enquanto milhares de opções para melhorarmos a vida das pessoas e das comunidades, para inovar e criar produtos e serviços de valor acrescentado e para sairmos do loop infinito de crises-à-Portuguesa acontece.

Resta agora aprendermos a saber fazer acontecer.

Dezembro de 2021

O Autor

Nuno Gaspar de Oliveira é CEO e Managing Partner na NBI – Natural Business Intelligence. Biólogo, é especializado em ecologia, pela Universidade de Lisboa, em geografia, pela Universidade Nova de Lisboa, e em estratégia e gestão, pelo Instituto Superior Técnico.

Conta com mais de 20 anos de experiência nas áreas da biodiversidade e ecossistemas: terá sido dos primeiros gestores de ecossistemas em Portugal, no Grupo Esporão, e fundou a também primeira empresa portuguesa especializada em planos de ação de conservação de biodiversidade.

Durante o seu percurso integrou vários projetos como consultor técnico e científico em organizações como a Quercus, a WWW – Word Wide Fund e a Associação Bandeira Azul da Europa. Participou também em vários planos de ordenamento florestal (Alentejo, Lisboa e Vale o Tejo), de agroecologia e valoração de serviços do ecossistema.

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