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Testemunhos

Restauro ecológico faz renascer valor natural da Quinta da Moenda

De propriedade abandonada a floresta diversa e mais resiliente ao fogo, a Quinta da Moenda, no concelho de Vila Nova de Poiares, resulta de um trabalho de mais de 20 anos de restauro ecológico, com forte aposta na regeneração natural. Um exemplo de boas práticas, aplicado numa propriedade da Liga para a Proteção da Natureza, a conhecer e replicar.

Quando no início da década de 90 chegou, quase que por acaso, à Quinta da Moenda, Samuel Vieira estava longe de imaginar o valor natural que aquele espaço viria a integrar. Situada no concelho de Vila Nova de Poiares, um dos 17 municípios do distrito de Coimbra, a Quinta da Moenda é hoje um “refúgio biológico”, resultado de um processo de restauro ecológico iniciado há mais de duas décadas.

Mas nem sempre foi assim. Há quase 30 anos, nada distinguia a então abandonada Quinta da Moenda das propriedades em redor. Coberta de matos que abafavam as antigas oliveiras e outras árvores de fruto, largamente dominada por acácias e progressivamente ocupada por eucaliptos, era ainda alvo frequente de abusos, como o roubo de madeira e despejo de lixos. O cuidado ao longo do tempo, permitiu recriar uma representação da floresta da região, através da condução da regeneração natural de espécies autóctones.

Na única propriedade da Liga Para a Proteção da Natureza (LPN) a norte do rio Tejo, e também com ocupação estritamente florestal, assistiu-se à criação de uma “pequena reserva”, um testemunho e demonstração de como restaurar ecossistemas florestais, mesmo em áreas muito degradadas em termos ecológicos.

Hoje, a Quinta da Moenda representa uma importante mancha verde no município e um apelo à comunidade: nos anos mais recentes, têm-se multiplicado as visitas, de estudo ou lazer, garante Samuel Vieira, hoje colaborador da LPN. O espaço, cada vez mais valorizado pela população, oferece condições aprazíveis para circuitos pedestres para descobrir a flora e fauna do local ou, simplesmente, para piqueniques junto à ribeira de Poiares, usufruindo da frescura da água e da sombra das árvores.

Nos próximos anos, há outro tipo de valorização que poderá florescer: está em curso o processo de certificação da Quinta da Moenda, que abrange o espaço e os seus serviços do ecossistema, agregando os benefícios que podemos obter da natureza, como a regulação do clima, a estabilização do solo e a purificação da água. “Já foi realizada a marcação das áreas, vai ser feito o levantamento da flora e está a tentar perceber-se quais as melhores abordagens a adotar tendo em vista o tipo de gestão de cada parcela”, explica Samuel Vieira.

Boas práticas de restauro ecológico

Numa área de quatro hectares, integrada na Zona de Intervenção Florestal da Arrifana, sobressaem na paisagem milhares de árvores, como bordos (Acer pseudoplatanus), castanheiros (Castanea sativa) ou carvalhos (Quercus spp.), espécies que, quando Samuel Vieira chegou à Quinta da Moenda, mal sabia distinguir.

Naquela época, era ainda um jovem estudante de Arqueologia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, quando decidiu criar, com um grupo de amigos, um refúgio para animais abandonados, desde cães a cavalos. Através deste projeto encontrou a Quinta da Moenda, espaço então emprestado pela proprietária e farmacêutica da terra, Maria do Carmo Albuquerque. Foi naquela quinta agrícola abandonada que encontrou o lugar ideal para dar continuidade ao seu projeto. A pensar na segurança dos animais, decidiu transformar um cenário dominado por mato alto, espécies sem interesse ecológico e invasoras num bosque de folhosas, menos vulnerável ao fogo. Fruto deste trabalho e também de alguma sorte, a Quinta da Moenda tem escapado aos incêndios numa zona de risco.

Em 2008, a quinta foi doada pela proprietária à LPN para dar continuidade ao trabalho que Samuel Vieira tinha iniciado e que continua a acompanhar, em conciliação com a sua atividade laboral. Apesar de não ter qualquer formação na área florestal, o responsável foi conhecendo e cuidando das várias espécies neste espaço fértil em natureza, experiências e aprendizagens. Leu livros, aprofundou pesquisas e aconselhou-se com amigos, como Joaquim Sande Silva, hoje professor na Escola Superior Agrária de Coimbra e membro da Direção Nacional da LPN.

A filosofia seguida para a recuperação do espaço faz da Quinta da Moenda um exemplo de boas práticas de restauro e de manutenção de áreas de floresta autóctone, tema cuja relevância fica bem patente pela declaração dos anos 2021-30 como a Década das Nações Unidas para a Recuperação dos Ecossistemas.

Na Quinta da Moenda, a plantação de novas árvores é algo raro. “Por norma, só o faço por altura de algum aniversário de amigos ou quando nasce uma criança na família. É mais seguro aproveitar as árvores que nascem naturalmente”, conta. Assim tem sido ao longo de mais de duas décadas, e árvores que, no início, não ultrapassavam a altura do joelho, hoje são exemplares de porte generoso.

A recuperação do arvoredo da quinta fez-se de acordo com processos que excluíram a utilização de máquinas pesadas – com maiores impactes locais, em prol do trabalho com ferramentas manuais e com motoroçadora. A utilização desta última, para eliminar a vegetação arbustiva ou invasora, é precedida por um reconhecimento da zona a tratar, que visa escolher os espécimes a preservar. Estes regeneram naturalmente no meio de tojos, silvados e acácias e são isolados através de uma limpeza manual.

O trabalho de limpeza é, muitas vezes, uma tarefa sem fim à vista: “Uma das zonas levou mais de um ano a ser limpa”, sendo concluído com uma poda dos ramos baixos e uma seleção de fustes, visando potenciar o crescimento, facilitar limpezas ulteriores e acelerar o ritmo de ensombramento. Este método simples tem de ser ajustado, na sua intensidade e frequência às espécies alvo, já que por exemplo sobreiros (Quercus suber) e cerquinhos (Quercus faginea) necessitam de muito mais cuidados do que robles (Quercus robur) ou bordos (Acer pseudoplatanus).

Esta é uma filosofia intrinsecamente relacionada com as origens de Samuel Vieira. É que, apesar de ter crescido em Coimbra, é natural de Angola e, depois de uma vivência em comunhão com a natureza, muito marcada pela imersão na selva, sempre lhe causou desconforto a destruição de uma árvore que fosse.

Replicar o exemplo da Quinta da Moenda

Este é um trabalho contínuo, até porque as intervenções têm sido faseadas e são por isso diversos os estádios de desenvolvimento observáveis na quinta. E se algumas áreas atingiram um elevado grau de complexidade e estabilidade (carvalhal com castanheiro e bordo), outras exigem ainda muita atenção e esforço. Hoje, além do trabalho de Samuel, a gestão da Quinta da Moenda conta com o apoio ativo da Câmara Municipal de Vila Nova de Poiares, o que tem permitido a sustentabilidade do “Projeto Moenda”, ao mesmo tempo que reconhece a importância do restauro e a expansão da floresta autóctone.

O projeto de restauro ecológico da Quinta da Moenda serviu de inspiração para uma candidatura ao programa LIFE (New Forests – Restoration of high value native forests in an ecologically-disturbed region of Central Portugal), que visa criar ilhas de biodiversidade naquele concelho e municípios vizinhos.