2024 foi o ano mais quente desde que existem registos e o primeiro ano completo em que vivemos com uma temperatura média de mais 1,5°C face aos níveis pré-industriais. Será que esta foi uma variação temporária ou um sinal de que o planeta já ultrapassou o limiar crítico do aquecimento global estabelecido pelo Acordo de Paris?
A temperatura média global já permaneceu por 12 meses consecutivos com mais 1,5°C do que tinha na época pré-industrial. Embora o Acordo de Paris tenha determinado que o aumento da temperatura média mundial não deve exceder 2°C até ao final do século, mantendo-se de preferência abaixo de 1,5°C, um ano acima deste limite não significa necessariamente que o limiar de 1,5°C já foi ultrapassado.
Há anomalias que podem causar flutuações temporárias na temperatura, pelo que são necessários 20 anos de registos com temperaturas médias similares para que as autoridades reconheçam oficialmente que o limiar considerado seguro no Acordo de Paris já foi ultrapassado.
Recorde-se que manter o aumento da temperatura abaixo de 1,5°C é considerado como o limite seguro para a vida no planeta. A diferença entre 1,5°C e 2°C, embora pareça pequena, tem consequências muito diferentes. De resto, os efeitos de grau e meio a mais já se fazem sentir em praticamente todas as regiões e ecossistemas. Entre as pressões nos ecossistemas florestais estão, por exemplo, o aumento da incidência de pragas e doenças, a alteração da área natural de distribuição das espécies e os fenómenos que propiciam grandes incêndios.
É essencial, por isso, compreender se as temperaturas registadas desde meados de 2023 e durante o ano 2024 poderão decorrer de uma flutuação temporária, causada por fenómenos isolados de curto prazo, ou se podem indicar que este foi o primeiro ano em que o mundo ultrapassou, de forma estrutural e irreversível, o limite de segurança estabelecido pelo Acordo de Paris para o final do século XXI.
Compreender a natureza temporária ou estrutural deste aumento de 1,5°C foi a questão de partida para dois artigos publicados na revista científica Nature Climate Change, em fevereiro de 2025.
Com base na análise de dados de temperatura global e em projeções, recorrendo a modelos climáticos, ambos os estudos atribuem alta probabilidade de que este aumento com que já vivemos signifique que entrámos no período crítico de temperaturas globais acima do patamar considerado seguro, e que mais 1,5°C de temperatura poderá ser a regra nas próximas duas décadas.
Este alerta é sublinhado logo nos títulos de ambos os artigos (traduzidos para Português):
– Um ano acima de 1,5°C assinala que a Terra está muito provavelmente dentro do período de 20 anos que ultrapassará o limite do Acordo de Paris – artigo de investigadores alemães.
– Doze meses a 1,5°C assinalam que o limiar do Acordo de Paris foi ultrapassado antes do esperado – artigo de investigadores canadianos.
Embora os estudos assentem na simulação de diferentes cenários apoiadas em modelos climáticos – representações da realidade – que não podem prever o futuro com 100% de certeza, ambos indicam que a Terra pode estar a aquecer mais rapidamente do que o previsto e, a manterem-se os níveis de emissões de gases com efeito de estufa (GEE), poderemos estar próximos do ponto de não retorno.
O artigo dos investigadores alemães analisa dados históricos relativos a aumentos de temperatura anteriores (0,6, 0,7, 0,8, 0,9 e 1°C) para testar se existe um padrão que relacione o primeiro ano em que determinado limiar é ultrapassado com o início do período em que essa temperatura se mantém de forma sustentada. E usa modelos climáticos para projetar a probabilidade de o limiar de 1,5°C continuar a registar-se nos próximos anos, considerando diferentes cenários de emissões de GEE.
A análise considera que a interação entre as tendências de aquecimento e a variabilidade da temperatura média global ao longo do tempo pode influenciar os resultados: quando as tendências de aquecimento a longo prazo são ténues, o primeiro ano excecionalmente quente tende a ocorrer devido à variabilidade natural da temperatura, antes de se iniciar um período de 20 anos em que esse nível de aquecimento se mantém de forma sustentada. Contudo, quando a tendência de aquecimento é forte, um ano excecionalmente quente já está geralmente dentro de um período longo (20 anos) em que a mesma temperatura média se regista sustentadamente.
Assim, a manterem-se as tendências de forte aquecimento que se têm vindo a observar, já teremos iniciado os 20 anos em que a temperatura média do Planeta se manterá com mais 1,5°C.
O artigo considera que há anomalias (variabilidade natural) a contribuir para o aquecimento, a exemplo do El Niño – fenómeno associado às variações dos ventos e das temperaturas da superfície do Oceano Pacífico, que acontece periodicamente a cada dois a sete anos, e que tem consequências globais. Contudo, atribui às emissões de GEE decorrentes da atividade humana a maior responsabilidade pela tendência global de aquecimento.
O estudo de investigadores canadianos utilizou dados observacionais e recorreu a modelos climáticos para simular diferentes cenários de emissões de GEE (que, tal como no outro estudo, estão alinhados com os cenários do sexto relatório do IPCC), assim como para avaliar a relação entre eventos de aquecimento temporários e de longo prazo.
O estudo parte de dados mensais (12 meses consecutivos com temperatura média acima do limite estabelecido, em junho de 2024) e apresenta diferentes probabilidades de já termos (ou não) cruzado o limiar dos mais 1,5°C de forma irreversível, consoante os cenários de emissões. No cenário intermédio, a probabilidade de já termos ultrapassado este limiar a longo prazo é de 76%.
Se as temperaturas voltarem a descer temporariamente nos próximos anos, há uma esperança (probabilidade de 24%) de que este limiar não tenha sido definitivamente ultrapassado. Se continuarem acima de 1,5°C por mais 18 meses, a ultrapassagem do Acordo de Paris é praticamente certa, refere o artigo.
O artigo também considera que alguns fenómenos climáticos extremos e fatores externos podem ter ajudado a aumentar temporariamente a temperatura. Entre eles são referidos o El Niño, que em 2023-24 foi especialmente intenso, contribuindo para as temperaturas recorde e aumentando a variabilidade climática natural; e o vulcão Tonga, cuja erupção em 2022 levou grandes quantidades de vapor de água a acumular-se na estratosfera, aumentando temporariamente o efeito de estufa.
Neste sentido, deixa à comunidade científica a mensagem de que futuras previsões devem incorporar fatores inesperados (como o impacte da erupção do Tonga) para melhorar a precisão dos modelos. No entanto, reforça: as simulações existentes mostram que um aquecimento de 1,5°C por 12 meses consecutivos, independente das condições recentes do El Niño, ocorre depois do limite de 1,5°C do Acordo de Paris já ter sido ultrapassado.