Comentário

Fernando Lobo Pimentel

A árvore que viveu duas vezes

Um novo organismo a nascer nas falhas de uma estaca que outrora foi uma árvore. É esta a história da árvore que viveu duas vezes – um exemplo de que, como dizia a canção, por vezes “é preciso morrer e nascer de novo”.

Olhando para a natureza podemos aprender um pouco mais sobre nós próprios. A nossa cabeça elabora sobre muita coisa, mas quanto a certas questões existenciais – nascer, viver, morrer – não somos muito diferentes dos outros seres vivos, nomeadamente as plantas.

Gostava de voltar um dia ao jardim botânico, mas observando do lado da sebe em que me encontro – o de quem passa e não de quem cuida – não tenho ilusões sobre a minha falta de inclinação para o mundo vegetal. E assim sendo, não esperava que daí me viesse algum ensinamento prático para a vida. Mas como há pouco tempo partilhava com alguém, as férias são uma altura boa para nos deixarmos surpreender, aceitar o que vier, sem tentar programar em demasia.

Foi nesse espírito que começou uma das minhas corridas junto à ria do Alvor, um dos exercícios mais aprazíveis de sempre, porque não estava nos meus planos, pelo silêncio, pela ausência do vento habitual ao entardecer. Normalmente faço um breve intervalo a meio, antes de regressar, e nessa altura reparei numa sequência de estacas de madeira que, ligadas por uma corda, delimitavam uma zona de nidificação de aves. Entre elas reparei numa em particular (a da fotografia abaixo).

Outrora parte integrante do tronco de uma árvore viva, estava agora transformada num paralelepípedo de madeira, a cumprir uma função, de mãos dadas com a morte, que a assistira tanto a si como às suas companheiras.

Fustigado pelo sol algarvio, o antigo pedaço de tronco, mesmo defunto, estava cada vez mais seco e apresentava já um conjunto de fissuras, numa espécie de cumprimento das penas do purgatório. Foi por isso com surpresa que observei, e registei com a câmara no dia seguinte, aquilo que se vê na imagem. Um qualquer organismo embrionário a desenvolver-se precisamente sobre as falhas da árvore primordial. Uma árvore que viveu duas vezes, renascida sob a forma de líquene.

A Mafalda Veiga cantava “é preciso morrer e nascer de novo”, e já tenho ouvido metáforas sobre a vida que se assemelham a esta, mas é curioso que também uma árvore nos recorde que das nossas fragilidades podem brotar as raízes da esperança.

Nós e as plantas. A mesma morte. A mesma vida nova. Por já não correr como dantes, pude ter este momento de contemplação. E um líquene, um extraordinário organismo que resulta de uma relação de mutualismo entre algas e fungos, também pode nascer de uma árvore, morta e seca ao serviço do Verão algarvio.

Setembro de 2024

O Autor

Fernando Lobo Pimentel é licenciado em Física, no Instituto Superior Técnico, onde concluiu também um Mestrado em Investigação Operacional.

Trabalha em sistemas de informação no Banco de Portugal e foi, durante dois anos, adjunto do gabinete do secretário de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do XVII governo constitucional.
Investiga de forma independente em matemática discreta e escreve ficção, poesia e crónica, tendo já publicado o livro “Da Terra e de Outra Parte”.

Temas | 

Comentário