Comentário

Teresa Borba

“Narrativas”

Já lhe aconteceu ter de imprimir um texto para o ler de forma mais eficaz, sentindo que compreende ou retém melhor a informação? Será possível que o suporte em que lê faça assim tanta diferença? Efetivamente faz, e este é um bom exemplo da importância de distinguir entre factos e “narrativas”.

Se já lhe aconteceu ter de imprimir um texto para o ler de forma mais eficaz, sentindo que compreende e/ou retém melhor a informação, encontrará no artigo Why higher-level reading is important, em particular no ponto que refere a “screen inferiority”, parte da explicação para tal e a referência a alguns dos muitos estudos feitos sobre o tema.

Dizem-nos estes estudos que os textos lidos no ecrã, comparativamente aos lidos na forma impressa, são levados menos a sério, que o envolvimento do leitor é menor, que a prática é suscetível de afetar a memória e a retenção, com consequências que não se esgotam no curto prazo.

Este tema exemplifica na perfeição a diferença entre os factos e as chamadas “narrativas”, bem como a importância das análises objetivas e cientificamente suportadas para a tomada de decisão.

Se “ler é ler”, dir-se-ia que o suporte utilizado não representaria um dos fatores mais relevantes para a retenção de informação, considerando que existe todo um outro conjunto de fatores envolvido, como o interesse no teor do que é lido, as condições ambientais da leitura e tantos outros que a experiência nos diz serem relevantes. Mas o certo é que a conclusão a que chegam repetidamente os estudiosos da matéria não alinha com esta narrativa de que “ler é ler” e de que o suporte não é relevante.

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Em boa hora os trabalhos sobre este tema terão sido considerados pelos decisores na área da educação, que estão a repensar a forma de evolução para o suporte digital de acordo com a evidência objetiva disponível, quer relativamente aos fatores já expostos, quer aos demais que, em cada caso, assumem importância decisiva, como o efetivo acesso aos meios digitais.

Decisão e “narrativas”

É evidente a necessidade de obter e ponderar a informação objetiva relevante em cada caso para a tomada de decisão. E se tal é importante na área da educação, não o é menos na área ambiental.

Esta necessidade é essencial, por um lado, para os decisores em matéria legislativa. Apesar de uma evolução que aparenta ser globalmente positiva neste sentido, há ainda muito por fazer na efetiva interação entre decisores e destinatários das decisões. E parte passa pela recolha de informação objetiva sobre a realidade que se pretende modelar, pois só com base nesta se conseguem construir normas que sejam por todos reconhecidas como justificadas, transparentes e exequíveis.

Por outro lado, a informação objetiva e baseada em evidências é essencial também para cada decisor individual, nomeadamente cada um de nós enquanto cidadão e consumidor. Com efeito, boa parte da atividade humana serve, direta ou indiretamente, os consumidores, e são as suas escolhas, idealmente informadas, que determinam o sucesso ou insucesso de cada ideia, produto ou serviço no mercado.

Neste âmbito, a diferença entre os factos e as “narrativas” são determinantes. As “narrativas”, entendidas como explanações de fiabilidade variável, em que as sequências de informação podem não distinguir correlação de causalidade e ser suportadas em dados erróneos, determinam frequentemente escolhas que não contribuem para o resultado adequado, nomeadamente ao nível da redução do impacte ambiental.

Cabe ao Estado, mas também às organizações e a cada um de nós, a preocupação de basear as decisões na racionalidade – em dados objetivos e devidamente suportados, em cada área da nossa vida em comunidade. Não há várias “verdades” ou a “verdade” de cada um. “Verdade” significa a “conformidade da ideia com o objeto, do dito com o feito, do discurso com a realidade”, segundo o dicionário Priberam. Não é uma “narrativa”, no sentido de fiabilidade variável anteriormente referido, mas um encadeamento lógico que procura a cada passo manter-se fiel ao referencial.

Distinguir factos de “narrativas”

As associações, como é o caso da APIGRAF – Associação Portuguesa das Indústrias Gráficas e Transformadoras do Papel, sabem bem o quanto é difícil alterar “narrativas” mesmo face à verdade mais evidente, seja qual for o interlocutor, individual ou coletivo, incluindo o estatal.

– Sabemo-lo no caso exposto ao início, em que apesar da informação existente sobre o diferente resultado da leitura em suportes impressos ou digitais, é difícil afastar a narrativa do “ler é ler”.

– Sabemo-lo no caso de todo o debate em matéria de embalagem, em que a cada passo há que ponderar as reais vantagens da reutilização, da reciclagem e da utilização única em termos de impacte ambiental em sentido lato, sem atender a “narrativas” construídas sobre perceções em vez de factos.

– Sabemo-lo quando falamos da indústria gráfica, que é omnipresente no nosso quotidiano e fundamental no funcionamento da sociedade. Apesar de cada vez menos, ainda encontramos quem nos identifique apenas como produtores de livros, revistas, jornais e folhetos (desafiamos sempre o interlocutor a olhar em redor e ver a quantidade de produtos gráficos que o cerca).

– Sabemo-lo quando falamos das características específicas de cada material de suporte sobre o qual imprimimos – e são tantos! – e nos referem que “se for digital não se abatem árvores”, como se os meios digitais fossem ambientalmente inócuos e representassem, em todos os casos, uma substituição eficaz ou sequer possível, e como se as referidas árvores (tal como uma plantação de cereais, por exemplo) não integrassem florestas criadas especificamente para a produção de papel.

Estes e muitos outros casos são o que nos leva a primar pela procura de dados objetivos e devidamente fundamentados para os nossos processos de decisão e, naturalmente, a exigi-lo ao legislador, na certeza de que é a melhor forma de manter a confiança e a transparência na nossa comunidade empresarial e junto de toda a sociedade.

Pela “conformidade do discurso com a realidade” e não pelas “narrativas”.

Maio de 2024

O Autor

Teresa Borba é licenciada em Direito pela Universidade Católica Portuguesa e Diretora Geral da APIGRAF – Associação Portuguesa das Indústrias Gráficas e Transformadoras do Papel, representando esta associação nas várias organizações nacionais e internacionais de que a APIGRAF (www.apigraf.pt) é membro, nomeadamente em matéria jurídica e ambiental.

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