Comentário

Catarina Pinheiro

Vamos gerir as nossas florestas ou vamos perder (ainda) mais tempo?

Como seria o nosso território se, quando eu era criança, tivéssemos agido com a competência necessária para gerir as nossas florestas? Não sei, mas sei que temos de fazer algo já. Se queremos beneficiar da riqueza destas áreas florestais é imperioso que saibamos geri-las. Passaram 40 anos desde que eu era criança, 40 anos de incêndios com intervalos menores, 40 anos de questionamento e indignação. Vamos perder ainda mais tempo?

Vou passar as férias na aldeia dos meus avós! Quantos disparavam esta resposta, com um brilho especial nos olhos, quando o ano escolar chegava ao fim? O leitor talvez seja um deles…

Cresci entre a lezíria ribatejana e a serra, onde viviam os meus avós. Os seus filhos, entre eles a minha mãe, deixaram a serra para trás, em busca de oportunidades de trabalho na área dos seus estudos. Outros emigraram, para a Suíça, França, Bélgica, …. Saíram e não regressaram. A aldeia não tinha como proporcionar‑lhes a vida que tinham, entretanto, construído.

Porém, todos os verões, a aldeia explodia de vida! Vindos de locais mais ou menos longínquos, era como se todos os caminhos levassem àquele pequeno aglomerado, escondido num vale. Era época de festa, banhos na ribeira, reencontros, perpetuar tradições. Mas foi, vezes demais, tempo de sobressalto, medo e angústia, por causa dos incêndios. Muitas vezes chegámos à aldeia através de estradas sinuosas que cortavam quilómetros e quilómetros de pinhal verde com aroma a resina, para regressar pelas mesmas vias, ladeadas de cinzas fumegantes, na companhia de um cheiro inconfundível e inesquecível, através de uma paisagem desoladora de negro a perder de vista.

Interior-Comentario_Catarina_Pinheiro

Sobral de São Miguel, Serra do Açor

As primeiras memórias que guardo desses anos são de medo, mais tarde de questionamento e, por fim, de indignação.

Teria cerca de sete anos…

“Por que razão as pessoas não se preocupam quando o fogo está longe?”

“Que mal fizeram estas árvores para, depois de tantos anos a crescer, arderem em minutos e ninguém se preocupar com elas?”

Os anos foram passando e os incêndios ocorriam com intervalos menores, das últimas vezes já nem pinheiros adultos existiam. Tinham cinco ou seis anos apenas. Não sei se estas memórias, de alguma forma, me levaram a escolher estudar Biologia, mas estão, certamente, na origem da minha admiração e predileção por plantas, especialmente árvores.

À medida que os anos passavam a indignação instalava-se. Como podemos continuar a aceitar que, verão após verão, arda tamanha riqueza? Como podemos, como povo, negligenciar assim o nosso território?

Passaram quarenta anos desde que fui assaltada pelas primeiras perguntas. 40 ANOS!

Os meus avós já não estão na aldeia… Já não nos reunimos todos os verões… Quando regresso à aldeia vejo‑a cada vez mais vazia. Nestas quatro décadas, as propriedades passaram para outra geração, já não vamos regar o milho nem debulhamos o feijão. Os velhos de outrora, que nos mostravam como se vivia no campo, já morreram…

Uma história de riqueza, nem sempre feliz

Mas para a Natureza o tempo não parou. O território, massacrado por incêndios, não ficou à espera de que o ajudássemos a recuperar. As florestas nativas, perdidas há muito, já tinham sido substituídas por pinheiros. Mas esses demoram vários anos a tornarem-se árvores, portanto são os matos que forram as encostas declivosas e que ainda sustentam o frágil solo. Outras plantas vão chegando e, com capacidade de crescimento mais rápido, aproveitam a luz proporcionada pela ausência de árvores de grande porte. Tomam conta do espaço, dando pouca ou quase nenhuma oportunidade para que as espécies que antes existiam possam crescer. São elas que vejo a ladear as estradas que me levam à aldeia e que se vão apoderando do espaço após cada novo incêndio.

A floresta sempre foi riqueza, antes de mais porque nos garantiu a sobrevivência. Os primeiros humanos a ocupar este cantinho à beira-mar plantado, que viviam na e da floresta, sabiam-no bem. A nossa relação com as plantas e, consequentemente, com as florestas foi mudando ao longo dos tempos… já não somos uma civilização recolectora. Explorando-a além capacidade regeneradora, destruímos a floresta nativa e fomos criando respostas para dar sustento às populações. A história da nossa floresta não é feliz. Cruza-se com a história do nosso povo, mas quantos de nós sabem que devemos a expansão marítima à floresta? Talvez devêssemos conhecê-la e, percebendo como aqui chegámos, decidir coletivamente que não podemos deixar que a história se repita.

É inegável que as árvores são uma riqueza enorme; não falo apenas na perspetiva ecológica, mas económica também. São inúmeros os produtos que obtemos das espécies florestais e descobrem-se cada vez mais potencialidades, nomeadamente para substituir materiais que utilizamos e que são produzidos a partir de fontes não renováveis. As árvores têm um papel crucial na tão almejada sustentabilidade, a vários níveis. Mas todo este potencial se perde quando deixamos que arda, literalmente!

As espécies não ficam à espera que as organizemos. Crescem onde e como podem. Se queremos beneficiar da riqueza das áreas florestais do nosso território é imperioso que saibamos geri-lo. Discutimos, discordamos, criamos leis, mas no terreno os bons exemplos são poucos. Todos os anos, o medo e os incêndios regressam. No meu tempo de vida perderam-se quarenta anos. 40 ANOS!

Competência e compromisso para gerir as nossas florestas

Como seria o nosso território se, quando eu era criança, tivéssemos tido a capacidade de gerir as nossas florestas? Não sei…, mas sei que temos de fazer algo já. Não podemos perder mais tempo.

Bastam-nos alguns minutos de pesquisa para perceber que sabemos muito sobre a nossa área florestal, as espécies, o solo… Desafio o leitor a dedicar algum tempo a alguns dos “Comentários” aqui deixados e ficamos com a certeza de que temos profissionais com toda a competência necessária para mudar o cenário atual.

Dos 92,225 mil km2 de território nacional, 33 mil Km2 (36%) correspondem a área florestal, mas apenas 5 mil km2 (15%) têm gestão certificada. A esmagadora maioria da área florestal, aproximadamente 30 mil km2 (91%), pertence a privados e apenas 9% são públicas (3% são áreas públicas e 6% comunitárias), o que constitui um desafio acrescido.

O tempo não volta atrás…. Pelas primeiras linhas deste texto percebem-se os motivos da desertificação do interior, da fragmentação das propriedades e do seu abandono. Mas não tem de ser assim. Acredito que a atual geração de proprietários prefere ter uma propriedade bem gerida, por profissionais habilitados, do que um pedaço de território com o qual não sabe bem o que fazer, que acarreta despesa e não proporciona rendimento.

Estou ciente do quão acesa pode ser uma discussão sobre espécies florestais em Portugal. Culpam-se espécies vegetais pelos incêndios e todos parecem ter uma opinião formada sobre o tema…

Eu não tenho. Quero acreditar que há espaço para tudo: plantações de espécies florestais para produção e áreas de preservação e conservação. Mas é preciso planear, estudar onde podemos ter umas e outras e ter coragem para decidir, mesmo sabendo que não será possível agradar a todos. Somos um povo razoável, desde que saibam explicar-nos, de forma clara, as decisões. É preciso confiar nos nossos especialistas, detentores do saber científico necessário. É preciso exigir aos responsáveis políticos o compromisso e a ética de tomarem decisões que visam o interesse coletivo e o bem-estar das atuais, mas também das futuras gerações.

O leitor poderá considerar este texto demasiado otimista, porventura fantasioso. Se assim é deve-se ao facto de viver os meus dias no futuro. Sou professora, o que significa que trabalho diariamente na construção do amanhã, com alunos ponderados, críticos e exigentes. São jovens, não podem decidir, mas viverão com o resultado das decisões que tomamos hoje. Não podemos perder ainda mais tempo!

O Autor

Catarina Pinheiro licenciou-se em Biologia (Coimbra, 2001) e, desde que concluiu os estudos, é professora de Biologia e Geologia, partilhando com os alunos o seu fascínio pelo mundo natural, em partilhar pelos seres vivos e pelos processos geológicos.

Começou a escrever várias histórias para as suas turmas e estas “histórias com ciência dentro” transformaram-se depois numa coleção, a “Aprender com ciência”, dirigida aos mais pequenos e às suas famílias.

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