Notícias e Agenda

21.10.2024

O estado da biodiversidade: o que se desconhece e o que se perdeu

O estado da biodiversidade: o que se desconhece e o que se perdeu

O desconhecimento sobre as espécies de plantas que existem em áreas de grande diversidade vegetal no mundo e o declínio acentuado das populações animais nos últimos 50 anos estão em foco nos estudos internacionais sobre o estado da biodiversidade, divulgados pelo Royal Botanical Gardens, Kew e pela WWF – World Wide Fund for Nature.

O estudo financiado pelo Royal Botanical Gardens, Kew, identifica zonas do mundo onde existe grande diversidade de plantas das quais se sabe muito pouco. São espécies de áreas que estão sub-representadas em coleções botânicas, muitas não estão descritas pela ciência e têm poucos ou nenhuns registos sobre a sua distribuição. Carecem, por isso, de estratégias de proteção ou conservação.

Publicado na revista científica New Phytologist, este trabalho identifica 33 darkspots a nível global – zonas em que “estamos no escuro” sobre a biodiversidade da flora –, consideradas essenciais para a preservação da diversidade genética. No entanto, este desconhecimento (ou pouco conhecimento) acaba por dificultar a avaliação do estado da biodiversidade. Assim, as espécies lá existentes perdem-se mesmo antes de ser descritas, aumentando a vulnerabilidade dos ecossistemas.

Com a definição dos darkspots prioritários, este estudo, intitulado “Plant diversity darkspots for global collection priorities” determina onde se localizam estas regiões prioritárias para a recolha de exemplares (que serão alvo de estudo, identificação e descrição taxonómica) e quais aquelas onde a conservação deve ser privilegiada para reverter ou travar a perda de biodiversidade.

Por sua vez, a WWF divulgou o Relatório Living Planet 2024 (Planeta Vivo), um documento bienal que atualiza o estado da biodiversidade e da saúde do planeta. O documento reporta que nos últimos 50 anos – entre 1970 e 2020 – houve um declínio de 73% no tamanho médio das populações de anfíbios, aves, peixes, mamíferos e répteis, de um total de 5495 espécies monitorizadas pelo Living Planet Index.

Este relatório sublinha que nos próximos cinco anos é necessário reforçar seriamente os compromissos e investimentos para travar as perdas de biodiversidade e o aumento da temperatura global, uma vez que os atuais são insuficientes:

  • Mais de metade dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS 2030) não serão alcançados. De facto, 30% estão estagnados ou a piorar face ao ponto de partida em 2015;
  • Os compromissos climáticos assumidos nacionalmente levariam a um aumento médio da temperatura global de quase 3°C até ao final do século, desencadeando, inevitavelmente, múltiplos pontos críticos catastróficos;
  • As estratégias e planos de ação para a biodiversidade, estabelecidos pelos vários países, são inadequados e carecem de apoio financeiro e institucional.

Ao atualizarem indicadores sobre o estado da biodiversidade e as prioridades de atuação, ambos os trabalhos trazem informações relevantes para as decisões a tomar na COP 16 – Convenção sobre Diversidade Biológica, que está a decorrer de 21 de outubro a 1 de novembro de 2024, na Colômbia, sob o tema “Em paz com a natureza”.

Onde ficam os 33 darkspots? Biodiversidade vegetal para conhecer

O Relatório “State of the World Plants and Fungi 2023” já tinha revelado que três quartos das espécies por descrever poderiam estar ameaçadas de extinção. “Saber onde existem mais espécies que permanecem sem descrição e sem lugar no mapa, muitas das quais poderão estar ameaçadas, é essencial para ir ao encontro dos objetivos do Enquadramento Global da Biodiversidade 2030”, referiu Samuel Pironon, um dos autores principais do estudo.

Por isso, a equipa de investigadores estimou o número de espécies desconhecidas por “país botânico” (áreas que coincidem com países ou partes de países) que continuam a não ter nome nem lugar nos mapas botânicos. Cruzando informação taxonómica prévia, definiu os 33 darkspots:

  • 14 localizam-se em vastas áreas da Ásia Tropical: Nova Guiné, Vietname, Mianmar, Índia, região indiana de Assam, Filipinas, Este dos Himalaias, Bornéu, Tailândia, Laos, Oeste dos Himalaias, Malásia, Bangladesh e Sumatra.
  • 8 na Ásia Temperada: Centro e Sul da China, Turquia, Irão, Sudeste da China, Uzbequistão, Tadjiquistão, Afeganistão e Cazaquistão.
  • 8 na América do Sul: Colômbia, Perú, Equador, Sudeste do Brasil, Venezuela, Costa Rica, Panamá e Bolívia.
  • 2 ficam em África: em Madagáscar e nas províncias do Cabo da África do Sul (no Sul e Sudoeste).
  • 1 na América do Norte: no Sudoeste do México.
Darkspots de biodiversidade com muito por conhecer em 2024

Fonte: Ondo at al., 2024. Plant diversity darkspots for global collection priorities, New Phytologist. NOTA: O vermelho-escuro indica os “países botânicos” identificados simultaneamente como darkspots e hotspots de biodiversidade; a cinzento-escuro, o país botânico que é considerado um darkspot, mas não é reconhecido como hotspot; a laranja, os hotspots de biodiversidade que não são identificados como darkspots.

Cruzou também esta informação com a localização dos 36 hotspots de biodiversidade que estão definidos no mundo, isto é, com regiões que são reconhecidas pela riqueza e raridade da sua flora, mas nas quais muitas espécies estão sob ameaça de extinção.

A conclusão é que a grande maioria dos darkspots se localizam em zonas consideradas hotspots de biodiversidade, sendo a única exceção a Nova Guiné – a ilha com maior número de espécies de plantas no mundo.

Cruzando os 33 “países botânicos” prioritários com informação sobre rendimento e capacidade de investir no conhecimento e proteção botânicos (incluindo países em que já está a ser feita atividade de conservação ambiental), a equipa traçou cenários e definiu as áreas prioritárias de intervenção.

Colômbia, Mianmar, Nova Guiné, Perú, Filipinas e Turquia são apontados como foco primário dos esforços globais das ações de recolha e conservação. “Entre estes países botânicos, prevê-se que alguns tenham um número relativamente elevado de espécies por descrever (por exemplo, a Nova Guiné), por localizar geograficamente (por exemplo, em Myanmar) e ambas as situações (por exemplo, Colômbia), e todos coincidem com hotspots de biodiversidade”.

Planeta Vivo: perda de biodiversidade aproxima-nos de pontos críticos

O Planeta Vivo 2024 atualiza as tendências globais de biodiversidade e saúde do planeta e confirma que o declínio no tamanho médio das populações monitorizadas entre 1970 e 2020 foi de 73%, continuando a aumentar face aos 69% que tinham sido registados no anterior relatório, publicado em 2022.

A análise baseia-se em quase 35 mil tendências populacionais de 5495 espécies de vertebrados, incluindo anfíbios, aves, peixes, mamíferos e répteis, que são medidas pelo Living Planet Index (LPI) e concluiu que:

  • As populações de água doce foram as que registaram os maiores declínios, com uma redução de 85%, seguidas pelas populações terrestres (69%) e marinhas (56%).
  • A América Latina e as Caraíbas apresentam os maiores declínios (95%), seguidas pela África (76%) e pela região Ásia-Pacífico (60%). Os declínios são menores na América do Norte (39%) e na Europa e Ásia Central (35%), regiões do mundo onde começaram mais cedo: muitas perdas ocorreram antes de 1970 e, em algumas regiões, houve alguma estabilização graças a esforços de conservação.

O estado da biodiversidade dado a conhecer pelo relatório da WWF não se refere ao número total de indivíduos, mas sim à diminuição média das populações acompanhadas, um indicador que antecipa o risco de extinções e ajuda a compreender as respetivas repercussões na saúde dos ecossistemas e no equilíbrio dos ciclos de sustêm a vida na Terra.

“Quando uma população cai a abaixo de determinado nível, a espécie em causa pode não ser capaz de desempenhar o seu papel habitual no ecossistema, seja ele a dispersão de sementes, a polinização, o pastoreio, a (re)ciclagem de nutrientes ou quaisquer outras funções que contribuem para o funcionamento do ecossistema”, explica a WWF, sublinhando que os reflexos se fazem sentir nos benefícios que os ecossistemas proporcionam à vida humana: na produção de alimentos, na disponibilização de água potável, no carbono armazenado que contribui para a estabilidade climática e em muitos outros serviços que a natureza proporciona.

Esta perda e degradação de populações e habitats interliga-se também com as alterações climáticas e leva à menor resiliência dos ecossistemas, aumentando a sua vulnerabilidade a perturbações, numa espiral que aproxima o planeta de pontos críticos – pontos de viragem irreversíveis.

Quando os impactes cumulativos passam determinado limiar, as alterações retroalimentam-se, podendo ser abruptas e irreversíveis. Continuamos a aproximar-nos de vários destes pontos de viragem, com alterações profundas nos sistemas que suportam a vida no planeta e que trazem estabilidade às sociedades, alerta o relatório, que deixa vários exemplos.

– Com as alterações climáticas e a desflorestação, a Amazónia pode chegar a um limiar em que as condições deixam de ser adequadas à continuidade da floresta tropical, levando a uma transformação irreversível nos padrões climáticos globais e libertando para a atmosfera até 75 mil milhões de toneladas de carbono, o que compromete definitivamente o objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5°C (face aos níveis pré-industriais). Estima-se que o ponto de não retorno possa acontecer se 20 a 25% da Amazónia for destruída. Atualmente, estima-se que a desflorestação já tenha destruído cerca de 14 a 17%.

– Nas florestas da zona oeste da América do Norte, uma conjugação de pragas (dos pinheiros) e incêndios de grande intensidade, ambos exacerbados pelas alterações climáticas, estão a levar a floresta a um ponto crítico, em que será substituída por matos.

– As ondas de calor marinhas resultantes das alterações climáticas estão a provocar uma lixiviação generalizada dos corais (por perda da relação de simbiose entre corais e algas, que deixa os corais sem proteção), especialmente na Grande Barreira de Coral, na Austrália. Mesmo que consigamos conter o aumento da temperatura abaixo de 1,5oC, prevê-se que 70 a 90% dos recifes de coral irão desaparecer, pondo em risco muitas espécies marinhas e a vida de centenas de milhões de pessoas cujo território (zonas costeiras) está protegido por estes ecossistemas.

– Nas correntes oceânicas, as alterações da corrente circular a sul da Gronelândia estão a alterar os padrões de clima na Europa e América do Norte. Este vórtice polar está ligado ao principal sistema de correntes oceânicas no Atlântico e o seu colapso significará uma rápida descida das temperaturas do ar na Europa, secas nos trópicos e mais aumento do nível do mar.

– Adicionalmente, o derretimento das camadas de gelo da Gronelândia e da Antártida Ocidental contribui para uma subida do nível do mar que pode atingir vários metros. O descongelamento em larga escala das zonas permanentemente congeladas – permafrost – provocará o incremento de emissões de dióxido de carbono e metano para a atmosfera.

Apesar da situação crítica, este relatório sobre o estado da biodiversidade destaca que ainda há esperança: se forem implementadas ações imediatas e ambiciosas, é possível restaurar o equilíbrio do planeta. E as ações que forem tomadas nos próximos cinco anos serão determinantes para o futuro da vida na Terra, refere, sublinhando a necessidade de uma transformação nos sistemas de alimentação, energia e financiamento – tornando-os mais verdes e mais justos, mais rapidamente – para alcançar as metas globais de biodiversidade e do clima até 2030.