Comentário

Luís Mendonça de Carvalho

Plantas e tradições portuguesas: uma herança etnobotânica para conhecer e preservar

Conhecer a nossa herança etnobotânica é uma condição essencial para podermos preservar um vasto e rico património material e imaterial, que testemunha as muitas e diferentes interações entre as sociedades humanas e as plantas.

Os seres humanos devem as suas vidas às plantas e foram também elas que permitiram a génese de todas as civilizações que floresceram na Terra. A agricultura possibilitou o desenvolvimento humano como o conhecemos hoje, já que não há civilizações que não se fundamentem nos recursos vegetais, em especial nos que permitem obter uma fonte estável de hidratos de carbono, como os cereais (ou espécies equivalentes, como a batata e a mandioca) e, também, de proteínas, que encontramos nas leguminosas.

A história do nosso país está fortemente ligada à história das plantas, quer sejam plantas nativas ou exóticas, já que, por exemplo, foi nas florestas de carvalhos que os portugueses encontraram uma fonte primária de alimento (bolotas) e, a partir do século XV, os materiais necessários à construção das caravelas e das naus que permitiram as viagens de exploração geográfica e comercial feitas por via marítima.

Para além de questões de natureza religiosa, estas viagens tinham como desejo primordial encontrar novas matérias que pudessem ser comercializadas e poucas tinham tanto relevo como as lendárias especiarias que provinham da mítica Índia, que se acreditava estar localizada nos confins da Ásia. O interesse pelas especiarias residia nas suas propriedades únicas e, simultaneamente, na crença de que provinham de áreas próximas ao Jardim do Éden, descrito no primeiro dos muitos livros que constituem a Bíblia.

As plantas nativas do território que hoje designamos Portugal, não apresentavam características que lhes conferissem elevado potencial agrícola, já que à exceção das bolotas dos carvalhos, em especial as das azinheiras, e de uma ou outra planta sazonal, como as amoras ou as camarinhas, permitiriam apenas uma alimentação muito ascética, na qual o espectro da fome estaria sempre presente. Por esta razão, a agricultura portuguesa terá começado com a introdução de plantas novas para a flora portuguesa de então, trazidas pelas populações migrantes, que, vindas do Mediterrâneo, chegaram até à Península Ibérica.

Através das plantas que nos chegaram das civilizações do Mediterrânio e, mais tarde, das espécies que os portugueses trouxeram da Ásia e Américas conhecemos a importância que tiveram ao longo do tempo. Na etnobotânica, estas plantas ajudam-nos a saber mais sobre a história da interação entre povos.

© Luís Mendonça de Carvalho

Os gregos terão introduzido a oliveira em Portugal e os romanos trouxeram até nós formas mais produtivas de agricultura, para além de terem reintroduzido ou reanimado a cultura dos castanheiros, que, embora nativos, poderão ter sido extintos ou reduzidos a populações relíquia devido à ação dos humanos.
Mais tarde, os muçulmanos introduziram plantas de origem asiática no Sul de Portugal, como a laranjeira-amarga e a alfarrobeira, plantas muito relevantes na história do Algarve, que foi a região portuguesa na qual os povos islâmicos se mantiveram durante mais séculos e na qual a presença de vestígios culturais de origem árabe e berbere é mais notória.

De ressalvar que a laranjeira-doce foi introduzida apenas no século XVI, quando os portugueses a trouxeram da Ásia. Foi a partir do nosso país que esta árvore rumou para outras nações, daí que, em algumas línguas europeias, o nome do fruto tenha ficado, etimologicamente, ligado a Portugal: portokáli (grego), portokalli (albanês), portocale (romeno).

Após as viagens que abriram novas rotas marítimas entre a Europa, as Américas e a Ásia, os europeus assistiram à introdução de plantas provenientes de Novos Mundos desconhecidos, e foi durante esse período que se introduziram plantas americanas como o milho, a batata, o tomate, o pimento e o tabaco que, nos séculos seguintes, foram integradas na agricultura portuguesa e, atualmente, têm uma relevante importância económica em algumas regiões portuguesas, como o milho (Minho), as batatas (Trás-os-Montes) e o tomate (Ribatejo).

Até meados do século XX, a sociedade portuguesa foi maioritariamente rural e todas as atividades quotidianas se desenvolviam em torno da agricultura, sendo necessário um vasto conhecimento sobre as plantas, não apenas alimentares, mas também medicinais, e outras, para que a gestão destes recursos pudesse prover o sustento dos humanos.

A relevância das plantas medicinais era mais evidente no passado, quando a medicina popular constituía o único recurso ao qual se recorria em caso de necessidade. A ubiquidade das plantas na farmacopeia tradicional devia-se (e ainda se deve) a questões de matriz ecológica, porque as plantas, ao contrário dos animais, não utilizam mecanismos de proteção ativa, como a fuga ou o mimetismo, estando impossibilitadas de se mover. Perante esta incapacidade, geram um vasto arsenal químico que visa afastar os predadores, e é exatamente nessa diversidade bioquímica que se encontraram os compostos que estão na origem dos efeitos fisiológicos das plantas utilizadas em sistemas tradicionais de medicina e, também, na génese de muitos fármacos da medicina ocidental contemporânea.

Em Portugal, a legislação emanada do poder régio cedo se interessou pelo que, hoje, denominaríamos medidas de proteção da natureza, embora o objetivo inicial fosse primariamente económico. Um exemplo deste interesse conservacionista foi a Lei das Árvores (1565), que obrigava à arborização de terrenos incultos e baldios com espécies autóctones, e, em 1938, o decreto-lei que protegia as árvores de interesse público e que foi a primeira legislação europeia neste domínio.

Etnobotânica: as plantas nas tradições, festas, lendas e no artesanato

A relação que estabelecemos com as plantas permitiu-nos desenvolver uma vasta cultura imaterial (tradições, festas, lendas, literatura) e material (artefactos).

Em Portugal, na área da cultura imaterial, encontramos muitos exemplos, como:

1) os ramos de loureiro que rodeiam a esfera armilar nas insígnias nacionais [Decreto n.º 150, de 30 de Junho de 1911];
2) o sobreiro como árvore nacional [Resolução da Assembleia da República n.º 15/2012];
3) os cravos, símbolo da Revolução de Abril de 1974;
4) as castanhas piladas e as favas para afastar os “maus espíritos”;
5) as Maias (Sul de Portugal) e os Maios (Norte de Portugal);
6) a Festa das Rosas, em Vila Franca do Lima;
7) a Espiga colhida durante a Quinta-Feira da Ascensão (40 dias após a Páscoa);
8) os crisântemos associados ao culto dos mortos (2 de Novembro);
9) os tabuleiros decorados com pão e flores (Festa dos Tabuleiros, Tomar) e as flores de papel nas festividades de Campo Maior;
10) as plantas associadas aos Santos Populares, como o manjerico (Lisboa) e o alho-porro (Porto), assim como o alecrim e o rosmaninho (fogueiras);
11) a antroponímia relativa aos apelidos [Avelar (avelã), Azevedo (azevinho), Cardoso (cardo), Capilé (avenca), Junqueira (junco), Macedo (maçã), Silva (floresta), Sobral (sobreiro), Teixeira (teixo), Zambujal (zambujeiro)];
11) a toponímia [Funchal (funcho), Ilha do Faial (devido à semelhança entre a faia-das-ilhas e a faia), Figueira da Foz, Lourosa (loureiro), Sabugal (sabugueiro), Silves (aludindo aos bosques que rodeavam o antigo povoado), e alguns topónimos que se repetem em várias regiões (Abrunheira, Amendoeira, Amoreira, Carvalhal, Salgueiro, Souto)];
12) o Ramo de Pinhões que revestem o andor, na Festa do Divino Espírito Santo, em Soure.

O uso das plantas no artesanato, nas lendas e festividades ou na toponímia são elementos fundadores da nossa cultura que o Museu Botânico do Instituto Politécnico de Beja, com a sua coleção etnobotânica, quer preservar e divulgar, para que este património não corra o risco de se perder.

Os artefactos tradicionais manufaturados a partir de plantas são muitos, embora parte deles estejam em risco de extinção cultural porque, frequentemente, já não respondem a necessidades humanas contemporâneas ou foram substituídos por outros de fabrico industrial.

Recordemos as croças de juncos que protegiam da chuva ou os cestos para apanha manual de frutos.

Apesar deste cenário potencialmente devastador para estes objetos, poderemos ainda evitar o desaparecimento deste património se lhe atribuirmos um novo valor de índole cultural, que os valorize como “símbolos regionais”. Este novo estatuto é um valor acrescentado não só para os objetos per si, mas também para quem os cria, evitando o desaparecimento de um saber ancestral, por vezes, multissecular.

Exemplos deste património são:

Miolo de figueira © Museu Botânico do Instituto Politécnico de Beja

1) os palitos de Lorvão feitos com madeira de choupo ou de salgueiro, que se utilizavam para decorar os bolos;
2) as esculturas de “miolo de figueira”, feitas com o interior dos ramos jovens de figueira, e os bordados de “palha de centeio”, ambos típicos da ilha do Faial;
3) os bordados de castanha (Marvão), nos quais as “cascas” das castanhas se bordam em tecidos de linho;
4) o escrinho e a breza da Beira Alta e Trás-os-Montes, feitos com palha de centeio e “cascas” das silvas (amoras-silvestres);
5) as máscaras de amieiro de Lazarim, para as festividades do Carnaval;
6) os paulitos dos Pauliteiros de Miranda, feitos em madeira de freixo, e as ponteiras das gaitas-de-foles feitas com madeira de buxo ou de enguelgue;
7) os artefactos de cortiça (Alentejo);
8) a Arte Pastoril das regiões nas quais se praticava a transumância de ovinos (Beiras e Alentejo);
9) os cestos de canas e de folhas de palmeira-anã (Algarve);
10) o artesanato em vime (salgueiro) da Beira Alta e da Ilha da Madeira;
11) os chapéus de palha de centeio, feitos na região de Fafe.

Conhecer a nossa herança etnobotânica é uma condição primordial para preservação do vasto e rico património português. Com o objetivo de o divulgar e valorizar, o Instituto Politécnico de Beja criou um Museu Botânico (2002) que tem, entre os seus objetivos fundacionais, contribuir para a salvaguarda de um extraordinário património nacional.

Julho de 2022

O Autor

Luís Mendonça de Carvalho nasceu em Abrantes e cedo se interessou pelo uso cultural das plantas. É biólogo, mestre em Bioquímica de plantas pela Universidade de Lisboa e doutorado em Sistemática e Morfologia pela Universidade de Coimbra, com uma tese sobre etnobotânica da região alentejana.

Atualmente, é professor-coordenador no Instituto Politécnico de Beja, instituição na qual fundou e dirige um Museu Botânico que, no seu acervo, tem milhares de objetos naturais, matérias-primas e artefactos de origem vegetal.

É investigador visitante na Universidade de Harvard e investigador integrado no Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa/Universidade de Évora.

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