Comentário

António Bento-Gonçalves

O passado esquecido dos incêndios florestais em Portugal

Os incêndios florestais não são um fenómeno novo em Portugal, mas desde a década de 70 do século XX, com a profunda transformação verificada no país, foram aumentando em frequência, dimensão e intensidade. Face a esta realidade, urge reforçar a aposta estratégica na prevenção, alavancada na educação, na gestão florestal e no ordenamento do território.

Embora em Portugal não sejam conhecidos muitos documentos escritos relativos aos incêndios florestais anteriores ao século XX, podemos aqui deixar, a título de exemplo, alguns relatos que ilustram a sua ocorrência e distribuição geográfica:

Diaz-Fierros (2019), com base nos estudos dos carvões, refere a ocorrência de incêndios na serra da Estrela, entre 11300 e os 11400 anos A.P. (Antes do Presente, tomando como referência 1950);

– No século XIV, nas Posturas antigas da Camara de Évora (1375 a 1395) proíbe-se o fogo em matos onde existiam sobreiros e azinheiras para prevenir os incêndios;

– Em 1464, na Carta Régia de D. Afonso V refere-se que “… se proibiu que de Coimbra a Seia se pusessem fogos até uma légua das margens do Mondego …”, sendo essa ideia reforçada em 1492, “… por causa dos muitos fogos que põem nas matas e charnecas ao redor do Rio Mondego …”;

– Em 1803 José Bonifácio de Andrada e Silva alude às “queimadas dos pastores” como um problema;

– No Código Administrativo de 1836 é imposto aos municípios a obrigatoriedade de extinção de fogos florestais e de socorro às populações que sofressem este flagelo;

– Em 1856 é aprovada, pelo rei D. Pedro V, uma portaria em que se ordena a todos os governadores civis a adoção de medidas especiais de proteção contra incêndios rurais, nomeadamente as queimadas ilegais;

– Em 1902, o Sr. Carlos Malheiro Dias, na Câmara dos Pares do Reino, refere os “… repetidos incendios que annualmente devastam importantes extensões de floresta”.

No entanto, segundo Pinho e Mateus (2019), até à década de 1960, os incêndios florestais, apesar de frequentes, só raramente assumiram proporções catastróficas, sendo conhecidos, todavia, alguns grandes incêndios florestais ocorridos no século XIX e início do século XX, como por exemplo:

– Pinhal de Leiria: 1806, 1814, 1818, 1824 ou 1825, 1875 e 1916 (o grande incêndio florestal de 1824/1825(?) terá queimado entre 4000 a 5000 ha);

– Alentejo: 1876;

– Serra do Buçaco: 1882/1883;

– Freguesia de São Frutuoso/Coimbra: 1913.

São as décadas de 1950 e 1960 que, em Portugal, introduzem uma nova realidade, a dos grandes incêndios florestais recorrentes:

– Vale do Rio/Figueiró dos Vinhos: 1961;

– Serra da Aveleira/Arganil: 1961;

– Viana do Castelo: 1962;

– Boticas: 1963;

– Serra de Monchique: 1966 (refira-se que a serra de Monchique tem sido sistematicamente – em 1966, 1979, 1990, 2001, 2003, 2004 e 2018 – percorrida por grandes incêndios florestais, desde os anos 60 do século XX);

– Sintra: 1966;

– Vale do Zêzere: 1970;

– Vale do Vouga: 1972.

Também no arquipélago da Madeira se encontram registos de grandes incêndios florestais, desde o século XV até aos nossos dias, nomeadamente nos anos de 1419, 1838, 1910, 1919, 1994, 1995, 1996, 1997, 2000, 2010, 2012 e 2016.

Na década de 1970, com a profunda transformação verificada no país, dá-se um aumento da frequência, da dimensão, da intensidade e da capacidade destruidora dos incêndios, o que veio a culminar nas tragédias de 2017, que feriram 320 pessoas e ceifaram a vida, em apenas dois dias (17 de junho e 15 de outubro), a 116 pessoas.

Ao longo dos anos, muitas foram as vítimas mortais dos incêndios florestais em Portugal. Sem sermos exaustivos (não foram aqui contabilizados os bombeiros falecidos em acidentes rodoviários, a caminho ou no regresso de incêndios florestais) contabilizam-se 257 vítimas mortais entre 1961 e 2018 (Quadro I), sendo que 65 eram bombeiros, 7 especialistas estrangeiros, 25 militares, 4 funcionários florestais e 156 populares, verificando-se que nos 38 anos do século XX, faleceram 64 pessoas, enquanto que, apenas em 19 anos, no século XXI, já perderam a vida 189 pessoas, sendo o ano de 2017 responsável por 61% do total das vítimas mortais, no presente século.

Quadro I – Vítimas mortais, por ano, em Portugal (1961-2018)

AnoVítimas Mortais
19612
19634
196625
19753
198514
198616
20005
20021
200321
200516
20068
20101
20112
20126
20139
20151
20163
2017116
20184
Total257

Esta dramática realidade está diretamente relacionada com o aumento, tanto do número como da dimensão dos grandes incêndios florestais (figura abaixo) e, especialmente, da sua capacidade destruidora, pois, se até 1986 nunca tínhamos sido flagelados por um incêndio com dimensão superior a 10 mil hectares, 2003 viu franquear a marca dos 20 mil hectares e, 2017, a dos 40 mil.

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Prevenção, educação e autoproteção para minimizar grandes incêndios florestais

Os incêndios de 2017 vieram demonstrar a carência de incorporação do conhecimento científico e técnico nas decisões operacionais, bem como a necessidade de se redirecionar a aposta estratégica para a prevenção, alavancada na educação, na gestão florestal e no ordenamento do território, com o objetivo de reduzir o número de ocorrências e as consequências dos grandes incêndios, quer pela adoção de medidas prévias conducentes à redução das vulnerabilidades, quer pelo melhor planeamento das ações, quer ainda, pela melhor preparação, coordenação e cooperação de todos os envolvidos.

A aposta na Educação terá que passar pela criação de um Programa Nacional de Educação Florestal (numa colaboração entre os ministérios que tutelam a educação, o ensino superior e ciência, o ambiente, as florestas, a economia, a administração interna e a defesa), que aposte em estratégias regionais/locais de intervenção, direcionadas para os diferentes grupos de cidadãos, pensado para o médio e longo prazo, que conduza a uma profunda MUDANÇA DE COMPORTAMENTOS E ATITUDES, de forma sustentável.

Em simultâneo, a criação e assimilação de uma cultura de AUTOPROTEÇÃO e de responsabilidade, individual e coletiva, que passe, por exemplo, por evitar comportamentos de risco ou por saber o que fazer em situação de manifestação do risco de incêndio, é um primeiro passo, mas essencial para que as atividades de proteção civil não se esgotem em ações de socorro/gestão da emergência e se possam focar no planeamento e na preparação e apresentem um elevado grau de prontidão.

Também a formação de técnicos superiores, altamente qualificados é imprescindível para que a aposta no referido planeamento e na preparação (a dimensão preventiva deverá ser pouco ou nada visível, mas de grande dimensão) seja uma realidade e que permita, igualmente, melhorar toda a estrutura institucional da proteção civil, ainda muito focada no socorro (deverá ser visível, mas mínimo, por ser desnecessário, embora altamente eficaz, sempre que atue).

Agosto de 2021

O presente artigo baseia-se no ensaio de António Bento-Gonçalves “Os Incêndios Florestais em Portugal” (2021), publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, na coleção “Ensaios da Fundação”.

O Autor

António Bento-Goncalves é doutorado em Geografia Física e Estudos Ambientais pela Universidade do Minho, onde é Professor Associado e Diretor do Departamento de Geografia. É Presidente da APG – Associação Portuguesa de Geógrafos e Investigador no CECS – Centro de Estudos em Comunicação e Sociedade, da Universidade do Minho. A sua atividade científica centra-se nos incêndios florestais, riscos naturais e processos erosivos.

bento@geografia.uminho.pt