Conhecer

Fogo

A área global ardida está a aumentar ou a diminuir?

Vários artigos têm reportado uma diminuição de área global ardida entre o final do século XX e a segunda década do século XXI, embora haja zonas onde os incêndios se têm vindo a intensificar. O clima mais quente e seco e a maior frequência de eventos extremos parecem estar a aumentar a área ardida principalmente nos trópicos, na região boreal e na Austrália.

Entre 2013 e 2018, a área global ardida por ano ficou consecutivamente abaixo da média registada entre 2001-2018, que se situou em cerca de 400 milhões de hectares. Os anos que apresentaram maior área afetada por incêndios foram 2002, 2004, 2011 e 2012, em que a extensão percorrida pelo fogo ultrapassou a média.

Assim, embora não exista uma tendência clara de decréscimo, a área global ardida entre 2013 e 2018 foi menor do que nos anos anteriores e esteve abaixo da média destes 16 anos, revela o relatório Global Forest Resources Asssessment 2020 (FRA 2020) das Nações Unidas. O FRA 2020 estima que cerca de 7,2 mil milhões de hectares arderam no mundo no período em análise. Mais de dois terços da área global ardida encontrava-se em África, seguindo-se a Oceânia (principalmente Austrália), e a América do Sul. Este asiático, América Central e Caraíbas foram as zonas que menos arderam, respetivamente.

Evolução da área global ardida 2001 – 2018, segundo o FRA2020 

Fonte: Adaptado de FRA 2020

Elaborado pelo departamento florestal da FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, o Global Forest Resources Asssessment (FRA) é divulgado de cinco em cinco anos. O FRA 2020 apresenta a estimativa da área global ardida entre 2001 e 2018 agregando os tipos de ocupações do solo (desde áreas urbanas a campos agrícolas, matos e florestas) e detalhando as regiões mais afetadas neste período. A informação tem como base, além de dados de relatórios nacionais, dados do Global Wildfire Information System preparados pelo Joint Research Centre, um “produto” de área global ardida e informação do Global Forest Change.

Área global ardida 2001 – 2018 por regiões, segundo o FRA 2020

RegiãoHectares%
África - Este e Sul2,18 mil milhões30,09%
África - Centro e Oeste 1,91 mil milhões26,36%
Oceânia 878,44 milhões12,12%
África - Norte 737,11 milhões10,17%
América - Sul 587,94 milhões8,11%
Europa 281,36 milhões3,88%
Ásia - Sul e Sudeste 262,06 milhões3,61%
Ásia - Centro e Oeste184,95 milhões2,55%
América - Norte124,87 milhões1,72%
Ásia - Este 77,64 milhões1,07%
América - Centro15,55 milhões0,21%
Caraíbas 4,53 milhões0,06%
Total7,2 mil milhões100%

Fonte: Adaptado de FRA 2020

A informação mensal disponibilizada pelo GWIS – Global Wildfire Information System, que abrange o período de 2002 a 2022, confirma que, desde 2013, a área global ardida tem sido menor face ao período entre 2002 e 2012. Embora os dados não coincidam com os divulgados no FRA2020, apontam no mesmo sentido: na fase inicial do século XXI (exceto em 2009) arderam anualmente mais de 400 milhões de hectares, enquanto de 2013 em diante nunca se chegou a um valor tão elevado.

Matos e pastagens, assim como savanas, foram as ocupações do solo mais afetadas pelo fogo ao longo destes 21 anos (cinco a seis vezes mais do que a área de florestas ou a de agricultura) e também aquelas em que se notam reduções mais significativas em termos de extensões ardidas.

Área global ardida, 2002 – 2022, segundo o GWIS (milhões de hectares)

Fonte: dados de Global Monthly Burned Area (2002-2022) derivados do “produto” de área ardida MCD64A1 (informação MODIS a 500 metros disponível em https://gwis.jrc.ec.europa.eu/apps/country.profile/downloads)

Inúmeras fontes e “produtos” sobre a área global ardida

Existem várias bases de dados e soluções tecnológicas, chamadas de “produtos” de área global ardida, que têm por base imagens provenientes de sensores (de satélite) com diferentes resoluções e algoritmos de processamento de dados também diferentes. Adicionalmente, portais como o Global Fire Atlas (GFA) ou o Global Wildfire Information System (GWIS) disponibilizam dados que permitem análises globais.

Também na Europa existem plataformas que disponibilizam informação sobre área ardida, como o European Forest Fire Information System (EFFIS), apoiado pelo Programa de Observação da Terra da União Europeia Copernicus. O Copernicus Emergency Management Service (CEMS) é outra fonte que apoia o conhecimento sobre a área global ardida. Este serviço, disponibilizado pelo programa Copernicus da Agência Espacial Europeia, pode ser solicitado por organismos públicos da União Europeia após desastres naturais e não naturais. No contexto dos incêndios rurais, disponibiliza levantamentos cartográficos das áreas afetadas e análises geoespaciais (a pedido) com recurso a imagens de satélite e fotografia aérea de muito elevada resolução espacial (<1,5 metros).

Embora os dados de satélite sejam a única forma de fazer uma análise global da área ardida, não podemos esquecer que este conhecimento está dependente da qualidade dos dados e das características dos sensores que seguem a bordo de diferentes satélites, captando imagens com especificidades que nem sempre são comparáveis. Dos trabalhos científicos que analisam a evolução da área global ardida, a maioria reporta informação sobre a qualidade e possibilidade de comparação dos dados, usando várias fontes e diferentes algoritmos.

Dados regionais podem enviesar conclusões sobre área global ardida

Vários estudos parecem indicar uma tendência de decréscimo da área ardida global, mas muitos deles revelam distintas realidades regionais, a ter em conta.

Alguns destes estudos relacionam esta redução com fatores ambientais e socioeconómicos, como as alterações climáticas ou a expansão de áreas agrícolas por exemplo, e indicam tendências regionais contrárias aos dados globais.

É o caso do trabalho “Incêndios na Vegetação no Antropoceno”, que revela: zonas densamente populosas no Canadá, zona oeste dos Estados Unidos da América, Portugal ou a zona de Nova Gales do Sul na Austrália apresentam um aumento na atividade do fogo nas últimas décadas.

Um outro trabalho, publicado em 2023, fez uma análise dos dados entre 2001 e 2020, mostrando que a zona temperada da América do Norte, a América Central, o Médio Oriente, a Ásia Boreal e o Sudoeste Asiático tiveram uma tendência crescente na área ardida, embora não significativa. Além disso, o Sul de África e a zona da Austrália e Nova Zelândia – duas das áreas geográficas com maior peso relativo para a área ardida global – são bons exemplos de como os dados regionais influenciam a análise global.

Os valores de área ardida destas zonas representam grande parte do total e, deste modo, variações pronunciadas podem alterar a tendência global, ou seja, anos com valores de área ardida muito elevados ou muito baixos nestas regiões vão alterar os resultados globais.

São vários os exemplos de trabalhos a indicar a influência de diferentes realidades regionais, em ocupações do solo distintas, e a necessidade de as ter em consideração quando se tiram conclusões globais. Vejamos mais quatro:

1 – FireCCILT11: África concentrou 66% da área global ardida

Uma equipa da Universidade de Alcalá, em Espanha, desenvolveu uma base de dados de área global ardida – FireCCILT11 – com informação de mais longo prazo: entre 1982 e 2018. Embora com várias incertezas associadas, é a série temporal de área global ardida mais longa disponível em 2023 e estima que a média anual de área ardida a nível global, entre 1982 e 2018, foi de 459 milhões de hectares. Os dados baseiam-se em imagens AVHRR – Advanced Very High Resolution Radiometer (captadas a bordo de satélite).

Embora o FireCCILT11 não revele uma tendência evidente, a área ardida registada parece ser menor até 1995, aumentar até 2021 e descer ligeiramente de 2013 em diante.

Os seus resultados são consistentes com informações de outros “produtos” no que diz respeito às zonas do globo mais afetadas: África é o continente com maior área ardida (contribui para cerca de 66%) e as zonas tropicais secas são as que mais contribuem para o total – especialmente em África, mas também no Norte da Austrália, Colômbia-Venezuela, Cerrado brasileiro, Camboja, Este da Índia e Ásia Central.

Embora pareça existir uma diminuição da área global ardida, não se pode olhar para estes dados de forma simplista e assumir a redução como uma tendência clara. É necessário considerar e compreender as variações locais e regionais. Por exemplo, as tendências globais são afetadas pelos incêndios em África, que representam cerca de dois terços da área global ardida. Assim, os indicadores de outras regiões tornam-se menos significativos para o total.

2 – GFED4: diminuição principalmente nas savanas tropicais do Sul da América e África e nas estepes asiáticas

Outra análise, que recai no período de 1998 a 2015, foi feita por uma equipa internacional liderada pelo cientista Niels Andela, da NASA, e revelou uma diminuição de cerca de 25% da área global ardida. Os maiores decréscimos ocorreram nas savanas tropicais da América do Sul e África e nas estepes asiáticas, zonas pouco florestadas. De acordo com este estudo, qualquer que seja o ano, a área global ardida fica sempre acima dos 400 milhões de hectares, embora nos anos 90 atinja valores mais elevados do que no final do período estudado.

Este trabalho usou dados da Global Fire Emissions Database – GFED4 – um “produto” que considera pequenos incêndios, normalmente abaixo do limite de deteção, o que resulta num acréscimo da área global ardida.

3 – Modelo SOFIA: aumento da área ardida no Sul de África

Um outro trabalho publicado pelo Fire project recai sobre a área global ardida e a sua relação com as mudanças na temperatura, precipitação, densidade populacional e condições da vegetação. Os resultados mostram que houve um decréscimo na área global ardida entre 1996 e 2015, embora os autores reconheçam que a tendência não é expressiva. A maior parte do declínio ocorreu no norte de África, América do Sul, Ásia Central e Austrália. Por outro lado, vastas zonas do Sul de África tiveram um incremento da área ardida.

Este trabalho usou o modelo SOFIA (no original, em inglês, SOFIA significa Satellite Observations to predict FIre Activity) para simular a área ardida mensal com base em dados de clima, densidade de população, cobertura do solo e índices de vegetação. Os padrões de área global ardida simulados entre 1994 e 2011 foram depois comparados com observações de satélite do “produto” GFED4 (com dados entre 1996 e 2015, do sensor MODIS a 500 metros) e da base de dados FireCCI50 da European Space Agency Climate Change Initiative (dados de 2001 a 2015, do MODIS a 250 metros).

4 – Estudo “Tendências e catalisadores globais e regionais”: decréscimo nas savanas africanas

Outro estudo publicado em 2022, intitulado “Tendências e catalisadores globais e regionais do fogo sob alterações climáticas”, liderado pela Universidade de East Anglia, no Reino Unido, estimou que, entre 2001 e 2019, a área global ardida decresceu cerca de 27%. Mais uma vez, os dados reportados indicam que de 2013 em diante a área global ardida ficou consecutivamente abaixo dos 400 milhões de hectares. O mesmo não aconteceu no período anterior: entre 2001 e 2012, o fogo afetou anualmente uma área superior, exceto em 2009.

Os maiores decréscimos de área ardida registaram-se nas savanas africanas, que têm um grande peso relativo nas tendências globais. Além destas zonas, registaram-se reduções no sul da Amazónia e no Mediterrâneo. Por outro lado, verificou-se um aumento na área ardida nas florestas do Pacífico (EUA e Canadá) e nas florestas do Este siberiano.

Quais são os principais fatores que estão a afetar o regime de fogos?

O clima é um dos fatores que mais influencia o fogo, seja de forma direta (pela temperatura, vento e humidade), ou através do crescimento da vegetação e acumulação de biomassa.

O aumento global da temperatura e os períodos de seca mais prolongados das últimas décadas estão a criar condições favoráveis para incêndios mais severos (mais intensos, de progressão rápida e muito difíceis de controlar). Além disso, o período médio da época de incêndios tem vindo a aumentar nos últimos anos – quase 20% entre 1979 e 2013.

Em todos os ecossistemas, os incêndios estão a crescer em intensidade e a ampliar-se em termos de alcance. Da Austrália ao Canadá, dos Estados Unidos à China, em toda a Europa e na Amazónia, os incêndios estão a causar danos no meio ambiente, na vida selvagem, na saúde humana e nas infraestruturas.”

É isto que adverte o recente relatório “Fogo Sem Controle: a crescente ameaça de incêndios atípicos em ambientes selvagens”, do UNEP – Programa das Nações Unidas para o Ambiente em parceria com o GRID-Arendal. E deixa o alerta: é provável o aumento global de incêndios extremos – os efeitos das alterações climáticas e alterações de uso do solo serão as causas de incêndios mais intensos e frequentes.

Uma análise das tendências da área ardida (a nível global e regional) e dos fatores que a influenciam mostrou que houve um aumento na duração da época de fogo na maior parte das regiões entre 1979 e 2019, resultante dos efeitos das alterações climáticas.

Existe uma correlação positiva entre a área global ardida e o chamado fire weather – condições de clima que propiciam a ignição e a propagação de incêndios -, especialmente em regiões como o Mediterrâneo, a costa Oeste dos Estados Unidos da América e as florestas de latitudes elevadas (florestas boreais).

Contudo, o fogo não é controlado apenas pelo clima. O uso do solo, o aumento da produtividade de vegetação e as atividades humanas vão afetar o número das ignições e a quantidade de combustíveis.

Por exemplo, nas savanas africanas (que representam boa parte da área global ardida), as alterações na área ardida estão mais relacionadas com diminuições da produtividade vegetal e com a fragmentação da paisagem do que com alterações climáticas (do fire weather). De igual forma, os incêndios em zonas tropicais estão mais relacionados com a desflorestação e atividade humana do que com os efeitos do clima.

A expansão e intensificação da agricultura foram identificados como os principais fatores de declínio dos incêndios, tendo o impacte da população e da atividade agrícola diferentes efeitos consoante a região.

População, área agrícola e densidade de gado têm uma relação negativa com a área ardida em zonas de savanas e pastagens. Ou seja, zonas com mais população, agricultura e gado tendem a arder menos. Contudo, a queima de resíduos agrícolas na Ásia cria uma relação positiva entre agricultura e área ardida. De igual forma, nas zonas tropicais, a utilização do fogo para abrir espaço para a urbanização (população) e para a agricultura leva a que haja mais área ardida em zonas mais pessoas povoadas.

A influência humana na dinâmica do fogo está relacionada não só com as dinâmicas populacionais, mas também com a gestão e uso do solo e com a “manipulação” do fogo em paisagens cada vez mais humanizadas. A população aumentou de cerca de 4 mil milhões em 1974 para mais de 6 mil milhões em 2000. Em 2023 temos mais de 8 mil milhões de pessoas. Quase metade da superfície “habitável” do nosso planeta (excluindo oceanos, glaciares e zonas áridas como desertos, dunas e afloramentos rochosos) é ocupada por agricultura, incluindo pastagens e produção de gado. Como resultado, a área florestal global continua a diminuir, embora o ritmo de desflorestação esteja a abrandar.