Comentário

João Alexandre Cabral

O paradoxo da floresta sustentável em territórios humanizados sem pessoas

O paradoxo da floresta sustentável será perpetuado enquanto os supostos territórios humanizados e as práticas tradicionais permanecerem desprezados. Promover o regresso das pessoas aos territórios despovoados e vulneráveis é um requisito essencial para que o objetivo de um território sustentável não seja meramente conceptual ou utópico.

No que respeita à sustentabilidade da floresta, mais do que apelar à consciencialização dos intervenientes políticos e privados para o imperativo que é pugnar por este desígnio, abstrato para a maioria da opinião pública, urge operacionalizar a sua implementação em termos das políticas ambientais e da tomada de decisão à luz do conhecimento técnico-científico atual.

Em Portugal, as mudanças globais, especialmente as que decorrem das alterações climáticas, dos usos do solo e das invasões biológicas, representam desafios colossais para a conservação da natureza, mas também para as atividades humanas, sobretudo as que dependem de territórios cujo (des)ordenamento é propenso a catástrofes, destacando-se as provocadas pelos fogos florestais ou rurais, pela seca e (ou) pelos eventos meteorológicos extremos. Um dos pressupostos para fazer face a estas mudanças reside na adaptabilidade dos territórios aos efeitos das mesmas. A pergunta latente, mas óbvia, é como se conseguem territórios adaptativos sem pessoas?

De forma aparentemente paradoxal, é nos territórios moldados durante séculos pelas atividades humanas, sobretudo agropastoris e agroflorestais, numa matriz histórica e tradicional adaptativa, que a questão da sustentabilidade florestal hoje mais se coloca. Esta evidência resulta sobretudo do facto desses territórios estarem agora despovoados e da sua gestão sustentável configurar um desiderato meramente conceptual, para não dizer utópico, cujo falhanço só se vem agudizando.

Num contexto de desmantelamento drástico dos mais elementares serviços de proximidade às populações destes territórios, ao nível da saúde, educação e suporte administrativo, como é possível inverter esta trajetória, tornando-os atrativos à luz das condições, direitos e garantias exigíveis na atualidade? Enquanto esta realidade se mantiver, o paradoxo da gestão sustentável do território em geral – e o paradoxo da floresta sustentável em particular – será perpetuado.

É neste enquadramento que a aplicação dos princípios inerentes à implementação dos Sistemas Socioecológicos e à preservação dos Serviços de Ecossistema se afiguram cruciais na promoção da adaptabilidade dos territórios e da sustentabilidade da floresta.

Os primeiros, embora sistemas complexos, são geridos envolvendo as componentes social, ecológica e económica, bem como as suas interações e retroalimentações. Os segundos, representam um elo fundamental entre estas componentes, uma vez que traduzem as contribuições dos sistemas ecológicos para o bem-estar humano, ao nível da provisão de recursos, da regulação ambiental, da vida saudável e do usufruto cultural, mas também porque influenciam e são influenciados pelas decisões sobre como gerir os territórios.

Vias para inverter o paradoxo da floresta sustentável

A mais-valia da perspetiva socioecológica reside no facto de promover a gestão integrativa e adaptativa dos territórios com enfoque nos serviços de ecossistema, aumentando a resiliência dos mesmos, por exemplo, por via da manutenção de funções, estruturas e interações essenciais para a integridade dos ecossistemas e da biodiversidade, promoção das práticas tradicionais e maximização da participação social em sistemas de governança descentralizados.

Nesta abordagem, as “práticas tradicionais” são entendidas como princípios de gestão que já deram provas da sua competência, ao longo de períodos suficientemente longos na história dos territórios, em manter os atributos de adaptabilidade à mudança, bem como de salvaguardar características paisagísticas únicas, cuja valorização económica, incluindo turística, não é negligenciável.

Na ausência destas práticas sobram os extremos da “hipótese da perturbação intermédia”, ou seja, o abandono rural (incluindo a pretensa “renaturalização”) e/ou a intensificação das práticas agrícolas e florestais (em termos de uso excessivo da água, mobilização profunda do solo, preponderância das monoculturas e sobrecarga agroquímica), ambos muito menos sustentáveis do que a “perturbação intermédia” representada pela gestão tradicional dos territórios, nomeadamente em termos da biodiversidade que alberga e dos serviços de ecossistema que proporciona.

Na perspetiva socioecológica as pessoas são parte integrante e imprescindível dos sistemas ecológicos, em territórios moldados secularmente pela atividade humana, providenciando serviços com um valor associado que extravasa em muito a sua dimensão estritamente económica. Infelizmente, este valor acrescentado só é reconhecido quando as tragédias se abatem sobre os territórios e populações, como as decorrentes dos grandes incêndios de 2017, em que se torna evidente o “custo” de não fomentar e apoiar a manutenção das práticas tradicionais que asseguram a resiliência e a qualidade de uma paisagem rural mediterrânica, naturalmente resistente e resiliente aos incêndios de grande intensidade.

O grande desafio político e sociológico será promover o regresso de pessoas aos territórios despovoados e vulneráveis, capazes de neles viver e investir, não numa perspetiva atávica, mas sim numa lógica moderna e sustentável, suportada por tecnologia e conhecimento científico de vanguarda, embora sem menosprezar as “Memórias Socioecológicas” das práticas ancestrais.

O potencial que estas práticas representam na mitigação dos riscos ambientais, requisito fundamental para a conservação de espécies e habitats cada vez mais raros, do património natural, cultural e imaterial das diferentes regiões do país, deve ser reconhecido pelo Estado, nas suas dimensões central e regional, tendo em consideração também os serviços que as mesmas prestam à sociedade em geral. Este reconhecimento não deve ser confundido com subsidiação das práticas tradicionais, meramente assistencialista, mas, pelo contrário, como a justa valoração dos serviços promovidos por essas práticas.

Nesta perspetiva, depois de tipificadas as práticas tradicionais que contribuem para a adaptabilidade dos territórios, os intervenientes e promotores passarão a constituir-se como “prestadores de serviços de ecossistema”, cuja valoração estatal será adicional e independente das dinâmicas económicas que lhes estão subjacentes. Talvez assim a sustentabilidade destes territórios e das suas florestas deixe de ser uma abstração, designadamente pela identificação e valoração objetiva daqueles serviços, com apoios diretos às atividades que os promovem, incluindo ao abrigo de uma marca de sustentabilidade que reverta para a sua atratividade e como mais-valia na exploração dos produtos endógenos associados.

Fevereiro 2024

O Autor

João Alexandre Cabral é biólogo, formado pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, onde concluiu o Doutoramento em Ecologia, em 2000. É, desde 2007, professor do Departamento de Biologia e Ambiente da UTAD – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e tem como principais áreas de interesse os estudos de Integridade Ecológica, Modelação Ecológica e Conservação da Biodiversidade.

João Alexandre Cabral é ainda investigador do CITAB – Centro de Investigação e Tecnologias Agroambientais e Biológicas. Tem publicados mais de 100 artigos científicos em revistas internacionais, três livros, 21 capítulos de livros e duas patentes, além de mais de 200 comunicações.

Fundou em 2001 o Laboratório de Ecologia Aplicada da UTAD (LEA), com mais de 100 projetos executados no domínio dos impactes infraestruturais sobre a biodiversidade, envolvendo mais de 30 entidades públicas e privadas. É atualmente cogestor do Sítio LTER – Portugal do Baixo Sabor (LTER_EU_PT_002).

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