Comentário

Sofia Vaz

Integrar o capital natural e os serviços dos ecossistemas florestais numa Economia de Base Natural

O contributo económico da floresta como capital natural é inquestionável, mas numa altura em que a própria União Europeia questiona as empobrecidas trajetórias da sustentabilidade em direção à neutralidade carbónica, o reconhecimento, contabilização e valoração do leque alargado de serviços dos ecossistemas florestais torna-se essencial ao progresso inclusivo de uma Economia de Base Natural.

Nos últimos tempos a floresta tem-se tornado popular nos mediáticos créditos de carbono, mas a visão afunilada do carbono e a corrente crescente do “greenwashing” (ou “greenwishing”) condicionam a relevância da floresta como elemento de restruturação, inovação e resiliência do território a desafios sociais e económicos, que vão desde a segurança pública às alterações climáticas.

A floresta como capital natural e fonte de serviços dos ecossistemas florestais

Como será que responderia à questão “Quais os serviços que considera essenciais para o seu dia-a-dia?” Talvez dissesse eletricidade, televisão, combustível ou gás. Talvez a imagem das faturas que recebe (e paga) todos os meses lhe passe pela cabeça! Agora pense nos bens e serviços que são indispensáveis para si e para a sua família, sem os quais não conseguiria ter saído da cama, ou até, sem os quais não teria uma cama. Talvez dissesse ar puro para respirar, fruta para tirar a fome, água para saciar a sede e até mesmo conhecimento para o seu labor? Pois então acaba de pensar em capital natural!

Em termos mais técnicos, o capital natural corresponde ao conjunto de recursos e ativos vivos e não vivos da Natureza. Por outras palavras, o capital natural inclui, entre outros, paisagens, ecossistemas, recursos silvestres, espécies, água e ar, que a natureza, e a floresta mais especificamente, oferece quer à sociedade, quer aos nossos negócios.

O capital natural – onde se obtêm os serviços dos ecossistemas florestais – está presente em praticamente todas as nossas escolhas diárias, muitas delas dadas como garantidas e sobre as quais nem refletimos, tais como a água que tomamos quando chegamos a casa depois de um longo dia de calor, o ar que respiramos para simplesmente funcionarmos no nosso quotidiano, ou a escolha de saída de fim de semana para desfrutar de uma caminhada sob a sombra de velhos carvalhos.

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À semelhança de outras formas de capital (humano, financeiro, tecnológico, intelectual, social, etc.), o capital natural tem um valor económico e social indissociável. Também tal como outras formas de capital, o capital natural fornece um fluxo de bens e serviços. Ou seja, as várias componentes do capital natural, incluindo a água, o solo, o ar e os recursos renováveis e não renováveis (como espécies vegetais e animais, florestas e minerais, entre muitos outros), interagem para fornecer à sociedade e às empresas a diversidade de bens e serviços dos ecossistemas. Estes serviços dos ecossistemas são imperativos para a sobrevivência e o bem-estar humano, ou por outras palavras, constituem a base de toda a atividade económica.

Além dos fatores de produção da floresta e do túnel de carbono

Grande parte das florestas nacionais (e europeias) é dedicada à produção. Nestas áreas, as matérias lenhosas são, na grande maioria dos casos, o produto de capital natural com mercado formal reconhecido. Para além das matérias lenhosas, a integração do valor económico e social do capital natural e dos serviços dos ecossistemas florestais está, contudo,  longe de ser conseguida, uma vez que conceitos como ‘externalidades’ e ‘fatores de produção’ limitam a perceção de valor e acrescem um certo sentido de ‘descartabilidade’ aos bens e serviços da floresta.

É certo que a floresta tem recebido um papel de destaque na regulação climática, ou melhor, um papel de sumidouro de emissões de gases com efeito de estufa, o que muitas vezes se centra numa visão ‘túnel de carbono’ que condiciona o reconhecimento do contributo da floresta numa diversidade mais alargada de bens e serviços. Há uma crescente tendência em reconhecer a floresta como um banco de créditos de CO2 ou de associar uma forma utópica de floresta como sequestradora de carbono de crescimento linear e infinito. No entanto, recentemente, temos também testemunhado vários alertas de “greenwashing, muitos deles associados à consideração de projetos de carbono florestais (entre outros) para offset (compensação), que questionam essencialmente a transparência, robustez e motivações subjacentes aos mesmos.

Em paralelo, observamos uma expansão de agentes e mercados focados no carbono (da floresta), dos quais é exemplo a recente proposta de Lei para um mercado voluntário de carbono de âmbito nacional. Esta expansão não deve ocultar o papel multifuncional da floresta portuguesa sob pena de criação de riscos e perda de oportunidades de valor natural para além do carbono. Devemos refletir como reconhecer, contabilizar e integrar o restante capital natural e serviços dos ecossistemas florestais como forma de apoio à restruturação, inovação e resiliência do território a desafios sociais, culturais e económicos.

Na trajetória de uma Economia de Base Natural da floresta

É nesta ótica que entra uma Economia de Base Natural que, tal como o nome indica, integra o valor da Natureza como forma de bem-estar e progresso económico assente na minimização de riscos e criação de oportunidades alavancadas no capital natural. A Economia de Base Natural assenta na valorização e valoração dos recursos e serviços da floresta, quer seja pela captura do valor ecológico ou económico de bens e serviços para o bem-estar das pessoas, trazendo para o centro o envolvimento com as comunidades e empreendedores. A Economia de Base Natural pressupõe, entre outros:

  • a identificação do capital natural e dos serviços dos ecossistemas, bem como no reconhecimento das consequências das nossas atividades sobre a biodiversidade e os ecossistemas florestais;
  • a avaliação da extensão e condição-tendência dos ativos naturais e dos respetivos fluxos e benefícios ecológicos face a determinantes de mudança da floresta;
  • a valoração da biodiversidade, do capital natural e dos serviços dos ecossistemas, de modo transparente e replicável, como forma prosseguir no alcance dos objetivos e metas de sustentabilidade;
  • a contabilização económica-ambiental dos investimentos e valores gerados pela gestão responsável dos ativos naturais, integrando as ‘externalidades’ no modelo de negócio, como alavanca à tomada de decisão e à gestão da floresta.

Para tal, é necessário percebermos como abordar o capital natural com investimento adequado ao modelo de negócio, privilegiando opções de custos reduzidos com elevada rentabilidade (ecológica, económica e social) a médio e longo prazo, tal como soluções baseadas na natureza. Entre as opções já existentes, destacam-se:

  • Os esquemas e mercados da Natureza, não apenas assentes nos créditos de carbono de compensação, mas em créditos premium de mitigação e restauro florestal, que consideram a diversidade de valores mais alargados associados à proteção de espécies e habitats (exemplo: charcas) no caminho nature-positive;
  • A aposta na alocação de soluções baseadas na natureza em áreas mais expostas e vulneráveis a alterações climáticas e desafios relacionados (exemplo: incêndios), como forma de redução de riscos de negócio e minimização de custos, melhorando as receitas do negócio a médio e longo prazo;
  • A identificação de bens e produtos com valor distintivo de mercado, bem como novos bens e produtos não-lenhosos florestais (exemplo: cogumelos, mel, plantas medicinais), mantidos sob práticas florestais regenerativas, como subproduto da multifuncionalidade e do bom estado de funcionamento do ecossistema;
  • O reconhecimento de práticas de gestão de bens de mercado florestais através de esquemas de certificação florestal independentes ou incentivos fiscais, não apenas associados à produção florestal, mas também ao longo da restante cadeia de valor;
  • O estabelecimento de esquemas de remuneração ou pagamento por serviços dos ecossistemas, que salvaguardem os custos de oportunidade e de investimento do negócio, bem como o valor adicional gerado pela gestão responsável do capital natural florestal, como promotor de biodiversidade, de resiliência a riscos, de regulação hídrica, de proteção do solo, entre outros.

Para avançar com uma Economia de Base Natural na floresta cabe implementar ações estratégicas, operacionais e financeiras, mas também de capacitação e de divulgação de informação transparente – por exemplo, através dos relatórios anuais de gestão e de sustentabilidade das empresas – que reconheçam e valorizem a diversidade de capital natural e dos serviços dos ecossistemas.

Afinal, tal como as outras formas de capital, o capital natural e os serviços dos ecossistemas florestais também devem ‘entrar nas contas’ e serem reportados à luz da minimização de riscos e da criação de oportunidades e valor na jornada da sustentabilidade económica nature-positive.

Outubro de 2023

O Autor

Sofia Vaz é membro consultivo na NBI – Natural Business Intelligence e investigadora da Fundação para a Ciência e a Tecnologia na Universidade do Porto. É bióloga, especializada em ecologia e doutorada na temática da valorização dos serviços dos ecossistemas. Coordena o grupo internacional de trabalhos em Serviços dos Ecossistemas do GEO BON (The Group on Earth Observations Biodiversity Observation Network), sendo colaboradora do IPBES (Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services) e da SCB (Society for Conservation Biology). Conta com mais de uma década dedicada a trabalhos e projetos de investigação e de consultoria na área da avaliação de capital natural e serviços dos ecossistemas, a nível nacional e internacional.