Comentário

Carlos Fiolhais

A floresta e a cultura

Quando penso em florestas, para além de pensar em ambiente e em saúde, penso em cultura. Os livros ilustram bem a relação entre a floresta e a cultura.

A relação entre a floresta e a cultura nem sempre é reconhecida, mas ela é inequívoca. Começo por recordar o astrofísico norte-americano Carl Sagan, um dos maiores divulgadores de ciência de sempre, que escreveu no capítulo “A Persistência da Memória” do seu livro Cosmos, publicado no original em 1982 (Gradiva, 2001): “O livro é feito de uma árvore. É um conjunto de partes lisas e flexíveis (ainda chamadas folhas) impressas em caracteres de pigmentação escura. Dá-se uma vista de olhos e ouve-se a voz de outra pessoa, talvez alguém que já tenha morrido há milhares de anos. Através dos milénios, o autor está a falar, clara e silenciosamente, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita foi talvez a maior das invenções humanas, ligando as pessoas, cidadãos de épocas distantes que nunca se conheceram. Os livros quebram as cadeias do tempo, provam que os seres humanos são capazes de exercer magia.”

É, de facto, verdade: quando leio o Cosmos estou a ligar-me a um físico já falecido, oficial do meu ofício que deixou de o exercer. Mas a sua mensagem passou inteiramente para mim.

Da ligação entre a floresta e a cultura nasce outra a ligação, entre pessoas e ideias. Mediada pelo papel, designadamente em livros que perduram, esta ligação resiste à passagem do tempo.

Quando penso em árvores, penso na possibilidade de delas surgirem livros e na capacidade prodigiosa que esse meio tem de ligar seres humanos de todos os tempos da história.

Uma árvore dá, de facto, mais do que um livro. Usando as ordens de grandeza de que os físicos tanto gostam corresponde a cerca de cem livros. Dez árvores dão uma edição de mil exemplares e mil árvores dão uma edição de dez mil exemplares: um best-seller entre nós, nos tempos que correm.

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Poder-se-ia pensar que os livros – e o papel em geral, porque há também as revistas e os jornais, para não falar já nos cadernos onde gostamos de escrever – são inimigos das florestas e da Natureza. Nada de mais falso: em primeiro lugar, o papel não se faz a partir da Natureza selvagem, mas a partir de árvores que são plantadas precisamente com esse fim. O tempo médio de uma árvore antes de se converter em livro varia entre dez e vinte anos e essas plantações são permanentemente renovadas. Colhe-se e semeia-se logo a seguir. Além disso, os valores atrás indicados pecam por excesso uma vez que não incluem a recomendável reciclagem, que pode ser feita cerca de uma meia dúzia de vezes. A reciclagem, que tem obviamente custos, é mais viável nas revistas, nos jornais e no papel usado do que nos livros, os quais têm em geral leitores que os guardam.

Não falta quem pense que os livros electrónicos vieram para substituir os livros em papel, com vantagens ecológicas. Apesar do rápido avanço desse tipo de livros quando a sua comercialização se iniciou, ele cessou nos últimos anos: o Amazon Kindle, surgido em 2007, prometia uma revolução, mas, passados mais de dez anos, ela não aconteceu na medida do que se previa: os ebooks só constituem 20 por cento das vendas, continuando a grande maioria dos livros a ser em papel.

Os jovens usam constantemente o telemóvel não só para chamadas como também para participarem em redes sociais e para jogos, mas não para lerem livros. Os que os lêem, por exemplo as obras de J. K. Rowling e de John Green, ainda os lêem em papel. Estou convencido que esse formato nunca será substituído, uma vez que um livro é um objecto afectivo com o design perfeito para as funções que cumpre. Falta também provar que a renovação dos aparelhos electrónicos assegura aos ebooks a mesma duração que tem tido o livro em papel (vários séculos!) e ainda que a substituição do material eléctrico e electrónico não origina problemas ambientais.

Portugal tem uma impressionante mancha florestal com conhecidos problemas, que vão desde a ameaça pelos incêndios, que as mudanças climáticas favorecem, até às dificuldades de gestão associadas à repartição por inúmeros proprietários privados, muitos deles sem dar às terras a necessária atenção. As florestas de produção, apenas em parte para o fabrico de papel, têm entre nós um problema de imagem, porque muita gente, a maior parte residente nos centros urbanos, não conhece bem a realidade florestal, e também porque alguma gente não se apercebe da relação estreita entre as árvores, o papel, os livros e, em geral, a cultura.

Não há cultura sem livros, não há livros sem papel e não há papel sem árvores. A floresta e a cultura podem caminhar a par, sendo naturalmente preciso que a silvicultura seja sustentável. A chave será sempre plantar e cuidar.

Cultivar florestas é, portanto, ajudar a fazer cultura. A palavra “cultura”, do latim “culturae”, tem a ver com “tratar”, “cuidar”. “acarinhar”. Originalmente o conceito era tratar as plantas: desenvolver trabalhos agrícolas. Mas depois ele foi transferido para o cuidado com as pessoas: desenvolver capacidades intelectuais nos seres humanos desde a mais tenra idade. Parece-me claro não só que as duas aplicações do conceito são compatíveis – a origem é afinal comum -, mas também que estão muito mais perto do que normalmente se julga. Não há cultura sem livros, não há livros sem papel e não há papel sem árvores. A cultura e a silvicultura podem caminhar a par, sendo naturalmente preciso que a silvicultura seja sustentável. A chave será sempre plantar e cuidar.

A respeito do plantio de árvores, é curioso referir que uma das obras pioneiras em Portugal foi escrita pelo brasileiro José Bonifácio de Andrada e Silva: “Memória sobre a necessidade e utilidade do plantio de novos bosques, particularmente de pinhaes nos areaes de beira-mar; seu methodo de sementeira, costeamento, e administração” (Tipografia da Academia Real das Ciências de Lisboa, 1815). Nesse livro, o professor da Universidade de Coimbra fala várias vezes da “economia da Natureza”, que é o significado de “ecologia”, o neologismo que o naturalista alemão Ernet Haeckel introduziria 51 anos depois. Haeckel nunca terá imaginado que a palavra que criou viria a ter tão ampla difusão.

Se sei estas coisas é porque elas estão nos livros. Volto a Carl Sagan, que um pouco mais adiante no mesmo capítulo de Cosmos, escreveu: “Os livros permitem-nos viajar através do tempo, beber na própria fonte o saber dos nossos antepassados. A biblioteca põe-nos em contacto com as concepções e o saber, a custo extraídos da natureza, das maiores mentes até agora existentes, com os melhores professores, provindos de todo o planeta e de toda a nossa história, para nos instruírem sem nos fatigarem e para nos inspirarem a dar nossa contribuição ao saber colectivo da espécie humana. As bibliotecas públicas dependem de contribuições voluntárias. Considero que a saúde da nossa civilização, a profundidade da percepção que temos das bases de apoio à nossa cultura e o nosso cuidado relativamente ao futuro podem ser medidos pelo tipo de apoio que damos às nossas bibliotecas.”

Eu não diria melhor do que Sagan escreveu em papel e depois sofisticadas máquinas rotativas gravaram ainda em papel para, ficando nas bibliotecas, chegar até nós e aos séculos vindouros.

Nota: artigo escrito segundo as regras anteriores ao Acordo Ortográfico de 1990

novembro de 2021

O Autor

Carlos Fiolhais nasceu em Lisboa, em 1956.Licenciou-se em Física na Universidade de Coimbra (1978) e doutorou-se em Física Teórica na Universidade Goethe, Frankfurt am Main (1982). É professor catedrático de Física aposentado da Universidade de Coimbra. Foi professor convidado em universidades do Brasil e EUA. É autor de mais de 60 livros pedagógicos e de divulgação científica e de várias centenas de artigos científicos, pedagógicos e de divulgação.

É o cientista português com mais citações. Ganhou os Prémios: José Mariano Gago da SPA (2018), Ciência Viva-Montepio (2017), Globo de Ouro de Mérito e Excelência em Ciência da SIC (2005), Ordem do Infante D. Henrique (2005), Inovação do Fórum III Milénio (2006) e Rómulo de Carvalho da Universidade de Évora (2006). Foi Director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e Coordenador da área do Conhecimento da Fundação Francisco Manuel dos Santos. É director do Rómulo – Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra e da colecção “Ciência Aberta” da Gradiva.