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Bioeconomia

Celulose: o superbiomaterial do interior das plantas e madeira

Componente base dos tecidos vegetais, a celulose é valorizada desde meados do século XIX. Hoje, os seus derivados são considerados um supermaterial que, além de biológico, amplamente disponível e renovável, tem características únicas para apoiar a inovação sustentável em dezenas de sectores.

A celulose é o polímero natural mais abundante do planeta. É um material renovável e biodegradável que pode ser obtido a partir de plantas, mas também de algumas algas, fungos e bactérias, assim como de invertebrados marinhos, os tunicados.

Formada por açúcares, a celulose é o principal constituinte da parede celular das plantas – uma espécie de cimento que sustém estas células. Obtê-la implica, no entanto, saber separá-la dos outros elementos que compõem estas estruturas celulares e fazê-lo sem danificar a celulose.

Em 1838, o químico francês Anselme Payen conseguiu, pela primeira vez, isolar e descrever um componente da madeira resistente à extração com solventes orgânicos, a celulose. Anos mais tarde, em 1886, o químico britânico Adrian J. Brown observou que a celulose era um dos componentes principais da película gelatinosa que se formava sobre o vinagre fermentado pela ação de bactérias, descobrindo a celulose bacteriana e um organismo que se tornou o modelo ideal para o estudo da biossíntese da celulose.

Ao longo do tempo, e de acordo com os meios que a ciência descobriu para “partir” a estrutura em que se encadeiam as fibras de celulose, foi possível selecionar conjuntos de partículas com características físicas, dimensões e formas específicas, obtendo-se diferentes morfologias de fibra: celulose microfibrilada, celulose nanofibrilada e a nanocelulose cristalina/celulose nanocristalina. Em paralelo, o conhecimento sobre fermentação bacteriana permitiu também sintetizar celulose bacteriana (mais pura e cristalina do que a celulose vegetal) e determinar que estirpes de bactérias o podiam fazer.

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A celulose é composta por milhões de moléculas de glicose (açúcares simples ou monossacarídeos), o que a torna num polissacarídeo, uma molécula composta por muitos monossacarídeos.

À medida que as diferentes partículas foram isoladas, estudadas, transformadas e deram origem a novos derivados, muitas das suas propriedades foram rapidamente valorizadas: a conjugação entre resistência, flexibilidade e leveza é um exemplo, a que se juntam muitos outros, como o elevado grau de transparência dos seus nanocristais ou a compatibilidade estrutural da celulose bacteriana com a do organismo humano.

O facto de estas partículas poderem conjugar-se, como peças de um jogo de construção, dando origem a materiais com diferentes microestruturas e propriedades, reforça a sua versatilidade, abrindo um vasto potencial de aplicação e reforçando a sua valorização.

Os primeiros derivados da celulose

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A celulose começou a ser transformada industrialmente – e os seus derivados aplicados por indústrias de diversos sectores – no século XIX. A primeira indústria a transformá-la foi a da pasta de madeira para fabrico de papel, em meados desse século, mas muitos dos derivados da celulose e das novas substâncias nela baseadas fazem parte da história de outras indústrias, desde o cinema à moda.

É este o caso da primeira película comercializada para registar imagens em movimento (em 1888) e dos rolos de filme de celuloide que a indústria cinematográfica usou durante muitas décadas. A inovação recorreu à cânfora para plastificar o nitrato de celulose, criando o primeiro polímero.

Outro dos materiais que usou a celulose no início do século XX foi o “raiom”, na área dos têxteis.

Desde finais do século XX, a celulose e derivados viram o seu potencial reconhecido num número ainda mais vasto de aplicações. Isto sucedeu tanto pelas suas caraterísticas físicas e químicas singulares, como pela urgência em encontrar materiais biológicos, amplamente disponíveis, renováveis e recicláveis, que possam substituir matérias-primas de base fóssil, rumo a uma bioeconomia mais sustentável.

Celulose e nanoceluloses estudadas e valorizadas em múltiplas áreas

As várias formas de celulose conhecidas tornaram-se, assim, motivo de estudo, teste e, em alguns casos, material aplicado em dezenas de áreas de atividade. Vejamos alguns exemplos:

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Na biomedicina: na área da engenharia de tecidos, a criação de materiais e implantes biocompatíveis para substituição ou reparação de tecido ósseo, pele e vasos sanguíneos é um dos exemplos. Mas há outros, como o desenvolvimento de películas cicatrizantes para regeneração de feridas (aplicação cutânea) ou de novos sistemas de encapsulamento de medicamentos capazes de transportar e libertar as substâncias ativas de modo mais eficiente no local do organismo onde o seu efeito é pretendido.

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Na eletrónica: os diferentes materiais à base de celulose estão a ser estudados como matérias-primas para transístores, nanosensores e nanofotosensores, elétrodos em baterias leves de armazenamento de energia, dispositivos termoelétricos incorporados em acessórios ou vestuário (inovação que junta a eletrónica e o têxtil), dispositivos eletrónicos médicos (incluindo sensores de monitorização de funções vitais por contacto com a pele) e dispositivos eletrónicos flexíveis. Em vários casos, além das funções que desempenham, trazem ainda uma componente orgânica, biocompatível e biodegradável pouco comum nos materiais tradicionais usados na eletrónica, contribuindo para reduzir a “pesada” pegada de carbono que esta área apresenta.

No têxtil: as diferentes fibras de celulose continuam a ser estudadas e aplicadas na produção de têxteis inovadores e nos chamados têxteis inteligentes, que trazem funcionalidades adicionais às que eram comuns no vestuário e nos têxteis dirigidos a áreas profissionais especificas, desde fardas militares a roupas hospitalares. Equipamento de desporto que melhora a relação entre absorção e a dispersão da humidade durante a atividade física, têxteis com incorporação de sensores para deteção de sinais vitais, tecidos enriquecidos com compostos antibacterianos para ambientes hospitalares ou a aplicação da celulose na confeção de coletes à prova de bala (alternativa tão ou mais leve e resistente do que o Kevlar) são exemplos.

No sector militar e da segurança: a nanocelulose possibilita aplicações avançadas numa série de produtos militares, além dos coletes à prova de bala. Materiais retardantes do fogo, componentes de propulsores, materiais de filtração contra agentes biológicos e químicos nocivos, têxteis funcionais e produtos eletrónicos. Por exemplo, o desenvolvimento de compósitos retardantes de nanocelulose têm-se tornado comuns em aplicações avançadas. As características dos compósitos termoestáveis reforçados com nanocelulose têm apresentado resultados promissores: elevado nível de segurança contra o fogo, com pouco fumo e redução dos gases tóxicos que se formam na exposição ao fogo, o que poderá apoiar a proteção de materiais, instalações e da própria vida.

Parte destas aplicações e muitas outras estão já presentes no nosso quotidiano, em centenas de produtos que podem ir desde as películas de biocelulose para regeneração da pele ferida ou queimada, às tintas de carros e edifícios, aos bioplásticos das embalagens do take-away e aos espessantes naturais amplamente usados na indústria alimentar, passando pelos papéis funcionais.

Ciência e tecnologia de mãos dados para transpor barreiras

Muitas das aplicações potenciais das celuloses continuam, no entanto, a encontrar barreiras que é preciso transpor. Por exemplo, a dificuldade de produzir celulose bacteriana a baixos custos e larga escala é uma delas.

Este é um tema a que várias equipas de investigadores, inclusive portugueses, têm procurado dar resposta. Por exemplo, no âmbito do projeto inpactus, foi desenvolvido um novo processo de produção de nanocelulose bacteriana através de “xaropes” de açúcar provenientes da biomassa de eucalipto, com rendimentos competitivos face a outros processos.

Além da viabilidade produtiva, há questões específicas em cada área de investigação e aplicação que centenas de equipas de cientistas, na academia e na indústria, continuam a procurar ultrapassar.

Por exemplo, para materializar o potencial da nanocelulose como material resistente ou de retenção de agentes biológicos nocivos no sector militar, é necessário, por exemplo, testar e comprovar a sua eficácia contra agentes reais de guerra biológica (antrax e outros). Da mesma forma, os materiais filtrantes baseados na nanocelulose (máscaras faciais ou filtros de ar para veículos) precisam de ser testados contra amostras reais de agentes de guerra química (gás sarin, por exemplo).

Também no sector biomédico são necessários mais testes, tanto em laboratório (in vitro) como em organismos vivos (in vivo) para avaliar elementos como o perfil de toxicidade e os efeitos secundários de medicamentos encapsulados em celulose. Outro dos desafios é assegurar que a estabilidade e as propriedades da biocelulose em aplicações biomédicas (implantes, por exemplo) se mantêm a longo prazo, salvaguardando a sua alteração ou degradação em ambientes biológicos.

Se algumas aplicações poderão ter condicionantes que a ciência não consegue ultrapassar, a boa notícia é que o enorme esforço de pesquisa tem vindo a descerrar o potencial para este superbiomaterial e seus derivados, dando novos passos rumo a uma bioeconomia mais sustentável.