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Desafios da propriedade rústica em Portugal, por Rui Gonçalves

Um dos maiores desafios dos territórios rurais é a fragmentação da propriedade, que dificulta a sua gestão, proteção e o desenvolvimento de atividades produtivas. Rui Gonçalves coordenou o Grupo de Trabalho para a Propriedade Rústica (2021-2023) e, além de traçar o diagnóstico, partilha soluções e recomendações.

A elevada fragmentação da propriedade em Portugal é um problema que tem vindo a ser identificado desde o século XIX, embora as soluções não tenham abundado. Por isso, em pleno século XXI, continuamos a ter mais propriedades rurais do que portugueses, muitas sem registo cadastral e grande parte com uma dimensão e estrutura que dificultam a sua gestão e proteção, assim como o desenvolvimento de atividades produtivas.

A dimensão média da propriedade rústica em Portugal é menor de um hectare e é tendencialmente mais pequena no centro e norte. Mesmo no Alentejo, onde é mais extensa, esta dimensão média não chega a 10 hectares, o que pode inclusive colocar em risco a viabilidade da mais importante atividade agrorrural do Alentejo – a exploração do montado –, já que o montado precisa no mínimo de 50 a 100 hectares para ser sustentável.

Acresce que o processo de divisão da propriedade rústica tem transformado os terrenos em parcelas muito estreitas – tiras de terra, finas e compridas – contribuindo para uma estrutura da propriedade onde é muito complexo trabalhar: é muito difícil levar máquinas ou recolher produtos em propriedades com esta configuração, refere Rui Gonçalves, lembrando que, por vezes, até conseguir chegar à propriedade depende da boa vontade dos vizinhos.

Heranças, inviabilidade de gestão e mais fracionamento

Parte deste diagnóstico relaciona-se com a forma predominante de transmissão da propriedade, que em Portugal é feita por morte do proprietário. 51% das transmissões de propriedade devem-se ao óbito e transmissão aos herdeiros. A dificuldade em repartir os bens e os prazos legais muito longos para a efetivação das heranças levam a que muitas propriedades acabem sem gestão, improdutivas, abandonadas.

Por exemplo, muitas vezes são herdados terrenos com diferentes dimensões e localizações, que não podem ser repartidos de forma equitativa e os herdeiros que ficam com a parte maior têm de pagar aos restantes as chamadas tornas. No entanto, nem sempre têm capacidade financeira de pagar estas compensações. E o processo arrasta-se.

Adicionalmente, a herança tende a gerar o fracionamento da propriedade. Embora haja normas para o travar, a tendência tem sido sempre para o aumentar, diz Rui Gonçalves, explicando que para travar o fracionamento, temos em Portugal o conceito de unidade mínima de cultura, que define a dimensão mínima que pode ter uma propriedade agrícola ou florestal. Esta dimensão varia consoante as zonas do país: pode ir de dois hectares em zonas de regadio a cerca de 48 em zonas de sequeiro ou floresta.

Imaginemos então que um terreno de 50 hectares foi herdado por cinco familiares. Teoricamente cada um ficaria com 10 hectares, fracionando-se o terreno em cinco. Mas nas regiões em que a unidade mínima de cultura é maior do que 10 hectares não pode haver esta divisão. Por isso, um dos herdeiros terá de ficar com mais terreno e pagar tornas a quem ficou sem ele.

Até que a herança fique totalmente resolvida podem decorrer várias décadas. Antes disso, todas as decisões têm de ser tomadas de comum acordo entre todos os herdeiros, o que inviabiliza a gestão das terras e aumenta as áreas improdutivas. E mais, em Portugal não é possível renunciar a um terreno.

É possível optar pela gestão conjunta da propriedade, contornando estas questões. Têm sido criadas várias figuras de gestão conjunta – como as Zonas de Intervenção Florestal, as Entidades de Gestão Florestal e, mais recentemente, as Áreas Integradas de Gestão de Paisagem –, mas estes conceitos não têm conseguido o sucesso que se ambicionava: “os portugueses são muito individualistas em relação à propriedade e é muito difícil separar a titularidade da gestão”.

Recomendações do Grupo de Trabalho para a Propriedade Rústica

Não há uma solução única que possa resolver estes e outros desafios que se colocam à propriedade rústica. A mudança é possível em contexto do necessário consenso. As propostas de ação do Grupo de Trabalho que se dedicou a esta temática de 2021 a 2023 dirigem-se, por isso, a áreas bem identificadas, como as heranças, a própria propriedade, o emparcelamento e o cadastro, entre outras. Eis algumas das medidas destacadas por Rui Gonçalves:

– Heranças

  • Reduzir o prazo para a habilitação de herdeiros para seis meses, em vez dos 10 anos atuais.
  • Reduzir o prazo para a aceitação ou repúdio da herança dos 10 anos atuais para dois anos.
  • Fixar um prazo de cinco anos para a realização da partilha.
  • Criar a figura do “administrador profissional” da herança, que passará a gerir o processo e terá poderes de liquidação, se os procedimentos não forem feitos nestes prazos.

– Propriedade

  • Criar uma definição única de “prédio”, pois cada lei tem a sua.
  • Aplicar o princípio do dever de uso e gestão responsável, porque, reforça Rui Gonçalves, “ser proprietário não é apenas ter, é cuidar”.
  • Criar um procedimento especial de renúncia abdicativa ao direito de propriedade de prédios rústicos e mistos, passando a propriedade para património do Estado, sem encargos financeiros para quem renuncia.

Emparcelamento

  • Criar novos estímulos ao emparcelamento – Facilitar o emparcelamento simples, criando o programa “Emparcelar é Ordenar” (mais ambicioso do que o Emparcelar para Ordenar), tornando o emparcelamento voluntário e sem necessidade de licenciamento e criando apoios financeiros ao emparcelamento, desde que os prédios tenham dimensão superior à unidade mínima de cultura.
  • Alargar o emparcelamento aos prédios mistos.

Cadastro

  • Nas zonas onde não há cadastro da propriedade rústica, caberá aos proprietários a entrega da configuração geométrica dos prédios (localização, dimensão e confrontação) nos atos e negócios jurídicos. Refira-se que nas zonas onde existe cadastro, já é possível visualizar esta informação através do SMOS – Sistema de Monitorização da Ocupação do Solo e dos prédios cadastrados, no site da Direção Geral do Território.

Sobre o Formador

Rui Gonçalves é especialista em ambiente e clima, formado em Engenharia do Ambiente e com Pós-graduação em Economia e Estudos Europeus.

Ao longo da sua carreira, desempenhou os cargos de Secretário de Estado do Ambiente (1999-2002) e do Desenvolvimento Rural e das Florestas (2005-2008), e entre as muitas responsabilidades que assumiu, destacam-se a preparação do primeiro Programa Nacional para as Alterações Climáticas, a criação das Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), o desenvolvimento da Estratégia Nacional para as Florestas e a coordenação do Grupo de Trabalho para a Propriedade Rústica.

Trabalhou em instituições como o Instituto de Meteorologia, a Agência Portuguesa do Ambiente, a Empresa Geral do Fomento (EGF, SA) e presidiu à Floresta Atlântica e à FlorestGal. Atualmente é Técnico Superior no Departamento de Apoio ao Investimento do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP, IP).