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João Ruano Rodrigues

A ilustração como redescoberta da profundidade do olhar

Com o ritmo vertiginoso dos dias, o olhar perdeu profundidade. A ilustração é um antídoto contra a superficialidade de quem vê sem observar e uma forma de redescobrir capacidades que perdemos quando estamos permanentemente ligados. A ilustração da natureza é um convite a desacelerar, observar, compreender e aprender com ela.

Vivemos tempos em que tudo acontece a um ritmo vertiginoso. Os dias são marcados por notificações incessantes, scrolls intermináveis e um fluxo de informação fragmentada que nos atordoa e nos deixa, muitas vezes, incapazes de processar o essencial. O mundo digital, que prometia abrir-nos horizontes, acaba, por vezes, por os estreitar, aprisionando-nos numa realidade demasiado superficial. Perante este cenário, questiono-me várias vezes: estaremos a perder a capacidade de viver e observar o mundo com verdadeira atenção e profundidade?

O distanciamento da natureza é um dos reflexos desta vida acelerada. Com a urbanização crescente, cada vez mais pessoas vão perdendo o contacto direto com espaços verdes, com o campo, as florestas ou as praias. E, no entanto, o impacto positivo que a natureza provoca no ser humano é inegável.

O contacto com o meio natural tem um efeito poderoso que se manifesta das formas mais variadas, proporcionando um alívio quase imediato para quem vive sob pressão constante e, como alguém uma vez me disse, “Só percebo a falta que isto me faz quando aqui chego.” Esse “isto” pode ser simplesmente sentir o vento na cara, ouvir o som das árvores, observar as ondas e usufruir do momento.

Quando nos permitimos estar na natureza, duas ações simples ganham uma importância renovada:  desligar e observar. Desligar é, provavelmente, mais um dos grandes desafios dos nossos tempos. A maioria de nós sente-se constantemente ligado a um fluxo de informação e comunicação que raramente para. Conseguiremos ainda desligar, no sentido profundo da palavra? E observar? Esse ato que vai além de simplesmente ver?

Fazer ilustração é aprender com a natureza, diz Joao Ruano

Estas são perguntas que me acompanham enquanto arquiteto paisagista e enquanto ilustrador, especialmente porque estas duas capacidades são ferramentas essenciais na minha vida, pessoal e profissional. A natureza, com o seu ritmo próprio, oferece-nos um convite para desacelerar e, se estivermos recetivos, ajuda-nos a redescobrir estas aptidões quase esquecidas.

Fazer ilustração obriga-me a ver como se fosse a primeira vez

Observar é muito mais do que ter os olhos abertos. Requer foco, obriga-nos a eliminar distrações e uma intencionalidade que parece estar em extinção. O que me fascina, como ilustrador, é como esta prática é transformadora.

Quando desenhamos algo, somos obrigados a olhar de forma diferente, a prestar atenção ao que antes passava despercebido. Uma árvore deixa de ser apenas um elemento do cenário e transforma-se numa estrutura complexa de formas, texturas e padrões que contam uma história. É como se o ato de ilustrar nos obrigasse a ver pela primeira vez. Costumo dizer que só compreendemos verdadeiramente algo quando tentamos reproduzi-lo. Essa tentativa de captar a essência do que vemos requer tempo, paciência e um olhar que vá para além do óbvio.

A ilustração do mundo natural é, acima de tudo, uma forma de aprender com ele. Desenhar não é apenas replicar formas ou cores; é uma forma de compreensão. Por exemplo, ao ilustrar uma planta, não basta ver as folhas. É importante perceber como crescem, como se ligam ao caule, que função desempenham no sistema em que estão inseridas. Este mergulho na observação e na compreensão torna o ato de ilustrar um equilíbrio entre a técnica e a emoção, um gesto criativo e contemplativo.

Ilustração de Joao Ruano

Para quem se dedica à ilustração, como eu, esta prática não é apenas uma profissão ou um hobby; é um antídoto contra a superficialidade crescente do mundo digital. Enquanto o digital muitas vezes nos dispersa e nos enche de informação que não conseguimos processar, ilustrar exige um retorno à essência, uma lentidão que é quase subversiva nos dias de hoje. E é nesta lentidão que reside a verdadeira riqueza: um olhar mais profundo, mais atento, mais humano.

Ilustrar paisagens, pessoas, plantas ou qualquer outro elemento é, no fundo, um gesto de reconciliação. Reconciliação com o tempo, com o mundo à nossa volta e, acima de tudo, connosco. Não se trata de abandonar o mundo digital ou rejeitar as facilidades que ele nos proporciona, mas sim de encontrar um equilíbrio. Podemos e devemos aprender a navegar entre os dois mundos: o da conexão rápida e o da presença profunda.

Na minha experiência, é através da ilustração que redescubro a profundidade do olhar. E é este mesmo olhar que precisamos de resgatar como sociedade. Porque sem ele, arriscamo-nos a viver num mundo onde tudo é visto, mas nada é verdadeiramente compreendido.

A ilustração obriga a observar, diz Joao Ruano

Ilustrações de João Ruano, in PoliniZAÇÃO

Março de 2025

O Autor

João Ruano Rodrigues é arquiteto paisagista, com pós-graduação em economia e gestão do ambiente. Iniciou a sua carreira na área da conservação da natureza e trabalhou vários anos como consultor de turismo de natureza e sustentabilidade. Atualmente, é sócio-gerente da Nature-based Living, que presta serviços de consultoria ambiental e sustentabilidade, e desenvolve projetos de arquitetura paisagista, a várias escalas e para diferentes sectores.

É também uma das caras da marca Cadernos de Campo, dedicando-se à ilustração de conteúdos técnicos e científicos, com o propósito de os tornar mais claros e acessíveis a todo o tipo de público.

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