Comentário

António Cláudio Heitor

A nossa relação emotiva com a floresta… um mal que sempre dura

As nossas comunidades e sociedades tiveram uma relação emotiva com a floresta, logo desde o “início dos tempos”. A floresta era um lugar escuro, perigoso, encantado e desconhecido. Dessas paisagens vinham ladrões, bandidos, criaturas mitológicas, quer boas quer “menos boas”, feras e bestas maléficas.

Construímos mesmo uma relação teológica e divina com a floresta – e as árvores – pois dela emanavam espíritos malignos, benignos e mesmo brincalhões. Mas além desta relação emotiva com a floresta também estabelecemos uma ligação mais “mundana e superficial”: sendo fonte de matérias-primas e de alimentos, a floresta seria um dos “alvos estratégicos” a destruir ou dominar em caso de guerra.

A floresta dominava então a paisagem da Europa e, à medida que nos fomos instalando, a necessidade aguçou o nosso engenho para tirar todo proveito dessas áreas sombrias onde a árvore dominava. Assim, usámos todas as ferramentas disponíveis para conquistar esse território encantado e perigoso, transformando as nossas paisagens gradualmente no famoso mosaico que hoje temos.

 

A estabilização das nossas sociedades diminuiu, de certa forma, a carga “fantástica e mágica” das florestas. Reduziu-se uma parte da relação emotiva com a floresta, pois aprendemos a domá-la e adquirimos conhecimento suficiente para perceber que muitos dos nossos receios não tinham fundamentação. Mais tarde ou mais cedo, chegámos à silvicultura, ou à ciência florestal como lhe quiserem chamar.

imagem-interior-comentario-António-Heitor

Esta sistematização de conhecimento florestal permitiu-nos agregar tudo o que envolvia as questões florestais e estabelecer regras e lógicas que nos trouxeram competências para tratar das árvores, dos povoamentos, das florestas, do solo, da água, da fauna e flora, da caça e pesca, do turismo e lazer, da economia florestal e das questões sociais e humanas associadas. Ainda percebemos que a floresta extravasava muitos dos seus limites físicos, incluindo, assim, as relações com a restante ruralidade que nos caracteriza.

E chegamos aos nossos dias. Seria de esperar que, depois de todo este caminho, os tais medos ancestrais motivados pelo desconhecimento fariam parte da história. Infelizmente não. A pouca predisposição para “aprender, compreender e aceitar floresta mantém-se”, os maltrapilhos, saqueadores e ogres é que são diferentes.

Gerir e pensar floresta obriga um técnico a considerar uma escala temporal e espacial tão grande que justifica a multiplicidade de diversas responsabilidades que nos são atribuídas. Obriga-nos ainda a um nível de conhecimento mais robusto, capaz de nos dar ferramentas que nos mostrem a intrincada teia de relações subjacentes aos ecossistemas florestais formais e à sua relação com o meio envolvente. Ou seja, a fronteira da floresta ainda é algo de difícil identificação.

Mas voltemos às fadas e aos elfos, entretanto, substituídos por imagens idílicas de áreas florestais do antigamente. Os ladrões e as bestas foram alterados por “sistemas silvícolas diabolizados”. Tudo, em grande medida, por falta de conhecimento.

 

A relação emotiva com a floresta persiste, mas mudaram os motivos: já não são criaturas mitológicas nem sombras, mas há novos ogres a ensombrar a floresta com noções simplórias que, de tanto repetidas, parecem inquestionáveis. Apesar de todo o conhecimento, estes estereótipos permanecem e acabam por travar a preservação e valorização deste recurso fabuloso e indispensável à nossa sobrevivência.

 

A esta ignorância silvícola acrescenta-se a “moda da simplificação de conceitos”. Os tais ecossistemas complexos são hoje uma mão-cheia de noções simplórias e vulgarizadas de ideias pouco rigorosas, que se tornaram quase mandamentos. Bons exemplos são a “Limpeza da Floresta”, a “Falta de Ordenamento” e a mais grave (no meu entender) o “Perigo das Monoculturas”. Tudo isto são os ogres dos tempos modernos.

A floresta continua a ser o local de despejo da “sociedade”. Para além dos monos e móveis que continuamos a largar na mata (esses sim a necessitar de serem limpos), a floresta serve para tudo e é “pau para toda a obra”. Alterações climáticas, seca, cheias, biodiversidade, carbono, emissões, sequestro, oxigénio, bem-estar, paisagem, etc., tudo é floresta. Ou melhor, tudo se empurra para ser a floresta a resolver.

Três ogres do presente

Mas voltemos aos ogres de hoje. Comecemos pela limpeza da floresta, essa ferramenta essencial para que não ocorram incêndios. A completa falta de rigor deste conceito só tem paralelo com a profunda ignorância de quem o vocifera por tudo e por nada. Será que gerir a quantidade de biomassa pode ser equiparado a passar um espanador por cima de um móvel, ou a varrer o pó com uma vassoura? Claro que não.

Antes de trautear esta tontearia perguntem-se qual a importância da vegetação em subcoberto e qual seria o impacto de deixar o “chão florestal” imaculado. É só pensar no solo para facilmente percebermos a complexidade da decisão de retirar o “mato” de uma determinada zona e as implicações para a fertilidade do solo e para os riscos de erosão. Fora todas as outras relações complexas, por exemplo, com a famosa biodiversidade. É claro que nunca poderemos esquecer o custo dessa operação e o tempo necessário para a fazer e se de facto é necessária para cumprimento dos objetivos dessa floresta.

Logo depois de ser necessário limpar, costuma vir o imperativo de ordenar. É já corrente como justificação para tudo, desde as alterações climáticas aos incêndios, o conceito de “Falta Ordenamento na Floresta”. Mas o que isso significa? Faltam estratégias, planos e leis? Não me parece. São necessários mais licenciamentos? Também não me parece.

Então ordenar será pôr as árvores em linhas e dar-lhe um objetivo? Mas isso já existe, chamam-se modelos de silvicultura e há para todos os gostos – alguns desatualizados, mas isso será outro problema. Quem usa esta justificação nunca deve ter submetido um Plano de Gestão Florestal ou um pedido de Arborização.

Por fim, somamos a esta verborreia o perigo das monoculturas! As monoculturas são os dragões de hoje. Mas o que será que se entende por uma monocultura? Calculo que estaremos a falar de povoamentos de apenas uma espécie. Mas então um arrozal, uma vinha, uma ceara de trigo ou um campo de girassol são “policulturas”? E qual o mal de ter uma área florestal apenas com uma espécie? E qual a vantagem de ter várias espécies? E quantas é que correspondem ao ideal? Essas espécies adequam-se aos objetivos da mata em causa?

Esta diabolização do termo sem a ele associar uma escala é uma desonestidade intelectual grave, pois, de facto, quem o afirma não pretende contribuir em nada para a discussão. Qual é a diferença entre um hectare de monocultura ou de 10, 100, 1000, um milhão de hectares? Esta sim é a questão relevante.

Quando, há três décadas, decidi que seria a floresta o meu modo de vida, nunca pensei que passados todos estes anos uma parte significativa da sociedade mantivesse uma relação cavernícola com este recurso fabuloso e indispensável à nossa sobrevivência.

Já não precisamos de ter medo da floresta, basta querer aprender e depois formar uma opinião robusta, que até pode ser a mesma, mas ao menos está fundamentada em algo mais do que meras ideias banais.

Janeiro de 2023

O Autor

Nascido em 1975, António Cláudio Heitor é licenciado em Engenharia Florestal pelo ISA – Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa e tem desenvolvido a sua atividade profissional centrado em questões florestais, de promoção do modelo cooperativo, de desenvolvimento rural, de gestão de recursos naturais, impacte ambiental e cinegéticas.

É técnico florestal e de recursos naturais da CONFAGRI, desde 2003. Em paralelo, tem participado em trabalhos de consultadoria na área florestal, agrícola, ambiental e de avaliação de políticas; e é auditor de Sistemas de Certificação Florestal Sustentada, no âmbito dos sistemas PEFC e FSC.

É ainda guia de observação de fauna e flora no EVOA – Espaço de Visitação e Observação de Aves e na Companhia das Lezírias. Recentemente, iniciou um projeto de comunicação e imagem: o Naturalmente Rural, que tem por objetivo manter os nossos valores rurais e naturais vivos.

Pelo seu percurso e conhecimento, assina este artigo com a nota: “Orgulhosamente Naturalmente Rural”.

 

Link Linkedin

Temas | 

Comentário