Comentário

António Luís Crespí

O dinamismo dos ecossistemas e o desassossego das plantas

Para contar a história das inúmeras espécies de árvores e arbustos é preciso fixar a ideia do dinamismo dos ecossistemas e recuar no tempo, retrocedendo ao enigmático período Jurássico – época controversa e conflituosa na qual viver seria um emocionante desafio. Só então poderemos compreender a transformação funcional a que os sistemas ecológicos foram sujeitos desde então.

Na transição jurássica, há cerca de 200 milhões de anos, as placas tectónicas foram deslizando, de tal modo que a disposição da crosta terrestre entre o início e o final desta Era se tornou muito diferente. Aquilo a que chamamos o macro continente Pangeia, uma gigantesca massa continental, começou a fragmentar-se e a deslizar para uma configuração mais próxima dos continentes como hoje os conhecemos. Ainda assim, a separação inicial libertou dois mega-continentes, Laurásia e Gondwana. No primeiro, a Norte, a Europa, Ásia e América do Norte, que estavam anexadas ao Ártico; no segundo, a Sul, a Índia, África, América do Sul, Austrália e Antártica mantinham-se unidas. Sendo assim, o Jurássico marca o início de um longo percurso, que encontra no fim do Cretácico (cerca de 66 milhões de anos) o culminar da primeira parte.

Durante este percurso, as fragmentadas e irregulares crostas terrestres que viriam a formar os continentes (que hoje conhecemos) foram surfando o fluído magmático terrestre.

A separação da Pangeia reativou correntes marinhas e atmosféricas, expondo a cobertura vegetal a um inesperado processo revolucionário e um desafio ambiental cheio de possibilidades. Indivíduos originados em biomas tropicais-subtropicais são exportados para biomas extratropicais, onde desenvolvem funcionalidades que lhes permitem aceder a matrizes ambientais diferentes.

Também estes biomas são dinâmicos, isto é, a sua localização e extensão é extremamente variável, e ao longo deste período, a sua localização foi tudo menos estável, com alterações propiciadas pela própria movimentação das placas tectónicas.

Comentário Antonio Luis Crespi

A tendência clara para concentrar precipitações ou, inversamente, não ter praticamente nenhuma chuva, juntamente com a sazonalidade, foi uma marca tipicamente Jurássico-Cretácica. O “paraíso” andava, portanto, muito dividido nesse tempo, tendo o “inferno” uma influência aparentemente mais marcante.

Perante este dinamismo dos ecossistemas, muitas espécies tiveram de abandonar o “éden tropical para entrar no limbo” e, desde então, penar nos biomas extratropicais. Esta “Divina Comédia”, por meio da qual foi estimulada uma migração germoplásmica (isto é, uma exportação de materiais genéticos), levou a novas viagens e combinações genéticas em latitudes mais frias.

Acrescente-se agora um pequeno detalhe de enormes repercussões: as variações do nível do mar. A movimentação das placas tectónicas envolveu também modificações glaciares, que incidiram diretamente nos volumes marinhos e, desta forma, na superfície das crostas terrestres.

Para entender a amplitude e implicações destas transformações Jurássico-Cretácicas (até ao Eoceno, pois esta revolução foi realmente longa e dolorosa, com quase 150 milhões de anos de lutas implacáveis) é preciso assumir que somos parte de um sistema dinâmico – a tal ideia inicial do dinamismo dos ecossistemas. Só desta forma, é possível compreender as incansáveis mudanças associadas aos biomas e os fluxos constantes de material genético.

Chegados a este ponto, temos um cenário, no mínimo, estranho no qual haveria muito desassossego entre as plantas. Mas neste complexo momento da evolução biológica houve algumas exceções de estabilidade. Uma delas vem da ordem Laurales, já então existente e que temos a sorte de conhecer nos nossos dias. Os loureiros, símbolos, entre a humanidade, de vitória e louvor, são um esplêndido representante deste conjunto biológico com quase 120 milhões de anos, que faz parte do grupo das angiospérmicas (plantas com sementes protegidas por frutos).

A arte da imitação

Vamos agora até à esplanada da nossa imaginação para sentirmos na pele a atmosfera Jurássico-Cretácica:

– Está um calor de morrer e, embora a Península (que viria a chamar-se Ibérica) seja uma ilha de perfil difícil, mas suave, temos uma sensação de aridez. Esta sensação deve-se ao efeito de estufa num dos seus “melhores momentos”, amenizado por correntes marinhas e atmosféricas típicas de um corredor – antes não seja porque estamos dentro do conhecido “corredor hispano”.

– A chuva é mais ácida nas latitudes onde se encontra nesse momento o que virá a ser a Península Ibérica.

Contudo há algo estranho, que chama a nossa atenção e que mostra, uma vez mais, o dinamismo dos ecossistemas: a vegetação não parece tropical e estamos relativamente próximos do Equador. Somos surpreendidos por uma vegetação arbustiva densa, esclerofila (de folhas duras, perenes e adaptadas a condições de secura), muito semelhante ao atual coberto vegetal Mediterrânico, com elementos tropicais de savana (entre eles, dominam as já extintas Benettitales). No entanto, este tapete vegetal está dominado por gimnospérmicas (cujas sementes não estão envoltas ou protegidas por frutos), especialmente coníferas. Será que houve alguma troca de papeis nesta peça teatral e, devido à falta de angiospérmicas, são as gimnospérmicas as que estão a interpretar as suas personagens?

Voltando a situar-nos no tempo – ainda estamos no início do Jurássico, pelo que será melhor esperar…, mas não muito. Paremos na segunda metade deste mesmo período e aí deparamo-nos com algo novo ou, pelo menos, que nos passou despercebido anteriormente: havia entre essas coníferas arbustivas um conjunto de indivíduos que não conseguimos enquadrar. Entre manchas bem reconhecíveis de coníferas, aproveitando especialmente clareiras e humidades, surgem grandes arbustos com folhas semelhantes às dos loureiros, mas mais desenvolvidos. Densas inflorescências esbranquiçadas aguardam agora a visita de insetos que as polinizem, ou do vento que dissemine os seus numerosos grãos de pólen.

Estamos a presenciar as primeiras lauráceas (ou Laurales, em geral), misturadas com magnoliáceas (melhor Magnoliidae, atendendo à diversificação das suas ordens e famílias) e representantes doutros grupos ancestrais (basais), vindas desde biomas subtropicais (os mais abundantes nesse momento ao longo da região subequatorial) pelas altas temperaturas e humidades.

Nestas estranhas paisagens vegetais havia, também, bosques: verdadeiros bosques, dominados por pináceas, araucariáceas ou podocarpáceas. Contudo, estas formações eram mais comuns nas terras altas, deixando os vales para os complexos matagais arbustivos.

O que, desde meu ponto de vista, é mais impressionante é a imitação comportamental que desenvolvem estas angiospérmicas basais e que já começa a marcar presença em diferentes regiões do planeta. A interrogação que pode saltar às nossas mentes, assistindo a uma visão tão inesperada como esta, é a razão pela qual as angiospérmicas estão presentes num cenário que, pelo menos aparentemente, não lhes resultaria tão convidativo. (Podemos dizer o que quisermos, mas o desenvolvimento realizado pelas gimnospérmicas foi realmente magnífico).

Em resumo, temos um conjunto de matrizes ambientais complexas extremamente dinâmicas – o tal dinamismo dos ecossistemas – e, para as quais, os indivíduos desenvolvem comportamentos caóticos diferenciados. Mas, ao mesmo tempo, esses comportamentos são repetitivos, numa dança que inevitavelmente leva os bailarinos a movimentos semelhantes, mas, no seu conjunto, diferentes. É neste esquema geral que se desenvolvem comportamentos tropicais e subtropicais, de entre os quais os das angiospérmicas basais, que culminariam em grupos como as Magnoliales ou Laurales.

Demonstrando o seu papel no dinamismo os ecossistemas, grupos de plantas como os Laurales e Magnoliales marcam a transição do domínio gimnospérmico (plantas sem frutos a envolver as sementes) para o angiospérmico (plantas com frutos que protegem a semente). Esta passagem (mesmo no pico da crise ambiental iniciada no fim do Jurássico) permite ver na futura Península Ibérica uma fisionomia vegetal muito semelhante à que hoje conhecemos.

Tão digna história é o que faz com que as Laurales, como as Magnoliales e as restantes angiospérmicas basais, sejam hoje um resto daquilo que, até bem avançado o Oligocénico, foi um conjunto germoplásmico bem mais diverso e com uma representação maior.

Na atualidade, podemos observar grupos sistemáticos “mais recentes” que imitam as morfologias destas plantas, confirmando essa dança orbital dos biomas. Entre essas plantas encontramos várias com preferências ambientais muito próximas dos loureiros, tais como os medronheiros (Arbutus unedo), os rododendros e azáleas (Rhododendron spp.), a cerejeira-portuguesa ou o falso-loureiro (Prunus lusitanica ou P. laurocerassus), ou ainda os folhados (Viburnum tinus).

Enfim, a vida dá demasiadas voltas num planeta como este, que não consegue descansar um momento que seja. Os nossos loureiros, por exemplo, estendem a sua geografia por um vasto território que abrange toda a bacia Mediterrânica. Outros representantes mantêm ainda a família das lauráceas ligada a biomas tropicais e subtropicais, por meio dos cinamomos (Cinnamomum spp.) ou das caneleiras do género Nectandra. Todo este maravilhoso conjunto germoplásmico foi determinante para consolidar a mudança vegetal das angiospérmicas e, por esse motivo, forma parte de uma aventura evolutiva que encontrou o seu ponto mais alto no Oligocénico. Desde lá até agora assistimos a um declínio na sua capacidade de desenvolvimento e evolução, embora continuem a ter um papel funcional decisivo nos ecossistemas em que estão presentes.

abril de 2022

O Autor

António Luís Crespí é professor de botânica e geobotânica na UTAD – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro desde 1999, e conservador do Herbário do Jardim Botânico da mesma Universidade. Integra o Centro de Investigação e de Tecnologias Agroambietais e Biológicas e entre os projetos de investigação em que esteve ou está envolvido, refiram-se, por exemplo, o primeiro Inventário florestal de Timor-Leste e o PorPlantSurf, que trabalha no desenvolvimento de materiais de inspiração biológica com novas aplicações funcionais em revestimentos industriais (indústria de tintas).

É doutorado em Botânica – Biologia Vegetal pela Universidade de Salamanca (1999) e mestre na mesma área pela Universidade de Santiago de Compostela (1991), ambas em Espanha, e é um apaixonado pela análise do comportamento morfogenómico e ambiental da flora vascular da Eurásia ocidental e norte da África, desde perspetivas sistémicas e funcionais.

Ao longo da sua carreira, foi autor e coautor de dezenas de artigos científicos – que cruzam ecologia e evolução, história natural, taxonomia, biodiversidade e conservação, dinâmicas e flutuações de populações, alterações climáticas, entre outros – e coautor do “Guia Ilustrado do Jardim Botânico da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro” e da coleção “Flora da Região Demarcada do Douro”.

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