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08.05.2024

De que eram feitas as primeiras canoas a navegar no Mediterrâneo?

De que eram feitas as primeiras canoas a navegar no Mediterrâneo?

Amieiro, carvalho, choupo e faia foram as madeiras usadas nas primeiras canoas que navegaram no Mediterrâneo. Foi com elas que se construíram as embarcações mais antigas conhecidas perto deste Mar, há mais de 7 mil anos, revela o artigo “Os primeiros barcos do Neolítico no Mediterrâneo: a comunidade de Marmotta”.

 

São as cinco embarcações mais antigas de que há registo na região mediterrânica. Terão sido as primeiras canoas a navegar no Mar Mediterrânico e foram descobertas no sítio arqueológico de La Marmotta, na margem do lago Bracciano, na região de Lazio, Itália.

Os vestígios encontrados são testemunhos dos sistemas náuticos de há cerca de 7 mil anos, comprovando que havia já um amplo conhecimento sobre as madeiras que podiam utilizar-se na construção de embarcações, as técnicas de as trabalhar e as de navegar.

As canoas de La Marmotta, assim como a ocupação de muitas ilhas no leste e centro do Mediterrâneo durante os períodos Mesolítico e em particular Neolítico inicial, são provas irrefutáveis da capacidade dessas sociedades para viajar por estas águas, concluem os investigadores no seu artigo, publicado na revista científica digital Plos One, da Public Library of Science.

Essa capacidade significa que, nestas comunidades, já haveria conhecimento técnico para selecionar as árvores que permitiam a construção de barcos, para as cortar, para escavar ou moldar os seus troncos, assim como para criar as estruturas necessárias para que estas primeiras canoas se mantivessem estáveis e pudessem ser conduzidas.

Estas primeiras canoas, assim como muitos outros artefactos descobertos em La Marmotta, revelam como, em poucos séculos, comunidades como esta conseguiram chegar a diferentes zonas da costa europeia e africana, onde estabeleceram um modelo de vida (modelo económico) complexo, estruturado em torno de um conjunto considerável de espécies de plantas e animais domésticos. Um modelo de que “somos os mais diretos herdeiros”.

 

Como eram estas primeiras canoas?

 

As canoas de La Marmotta eram feitas de troncos únicos e na sua construção recorreu-se ao uso de fogo para facilitar a escavação do interior, o que indica um elevado nível de domínio técnico. As cinco embarcações têm dimensões e formas diferentes, o que sugere terem sido usadas para navegar em diferentes locais – lago, rio e mar – e com diferentes finalidades.

De acordo com os vestígios da madeira (avaliados por datação de carbono, com dados ajustados e submetidos a um modelo de estatística Baysiana), as primeiras canoas a cruzar o Mediterrâneo deverão datar de entre 5620–5490 a.C. e 5310–5085 a.C.

Refira-se que as canoas foram encontradas submersas, sob oito metros de água e três de sedimentos, razão pela qual se encontram relativamente bem preservadas, tendo em consideração a sua idade.

 

– Canoa 1: Feita com um tronco de carvalho (Quercus sp.), com 10,43 metros de comprimento. Possui quatro reforços transversais na base, feitos com o mesmo tronco da canoa, e três objetos em forma de T, com buracos, que poderiam ter sido usados como suportes de uma vela ou de estabilizadores, indicando um uso avançado para transporte de pessoas, animais e bens. A dimensão desta canoa indica que seria demasiado grande para navegar apenas no lago onde foi encontrada, sendo possível que fosse usada para fazer os 38 quilómetros do rio Arrone que ligam o lago ao Mar Mediterrâneo e também para navegar neste Mar.

– Canoa 2: Construída a partir de um amieiro (Alnus sp.), tem 5,4 metros de comprimento. Devido ao seu tamanho e forma, acredita-se que era usada para pesca, colheita de outros recursos e transporte de pessoas e pequenos animais pelo lago Bracciano, junto ao qual fica Marmotta

– Canoa 3: Também feita a partir de um tronco de amieiro, tem 8,35 metros de comprimento. Semelhante à Canoa 1, tinha reforços transversais e pode ter sido usada para viajar, quer  no lago, quer no mar.

– Canoa 4: Feita com madeira de choupo ou álamo (Populus sp.), é a canoa que se encontra em pior estado de conservação. Os fragmentos indicam que teria uma largura máxima de 65 centímetros. A sua função exata é incerta devido à deterioração. Pensa-se que esta canoa e a anterior serão as duas mais antigas.

– Canoa 5: Esculpida a partir de um tronco de faia (Fagus sylvatica), teria pelo menos 9,5 metros de comprimento e 60 centímetros de largura, dimensões estimadas pelos fragmentos encontrados, que indicam poder ser provavelmente maior. Possui dois reforços transversais e pode ter sido usada para viagens mais longas.

Num projeto de arqueologia experimental, foi construída uma reprodução da canoa 1, que comprovou a sua navegabilidade em mar: com ela, uma equipa navegou mais de 800 quilómetros pela costa Mediterrânica, numa viagem que terminou nas praias portuguesas. Numa segunda reprodução desta mesma canoa, uma equipa sem experiência de navegação conseguiu percorrer, a remar, cerca de 50 quilómetros por dia. Supondo que os utilizadores das canoas originais tinham mais experiência em navegação, é possível que pudessem percorrer longas distâncias em curtos espaços de tempo.

Outras espécies além das usadas nas primeiras canoas

 

Muitos outros vestígios revelam mais sobre a vida desta comunidade e entre eles estão registos botânicos que sugerem o uso de dezenas de espécies de plantas em diferentes ocasiões, como por exemplo:

– Na alimentação: parte substancial dos vestígios botânicos analisados correspondem a cereais, incluindo três tipos de trigo e dois de cevada, mas foram igualmente encontradas leguminosas, de que são exemplo ervilhas, lentilhas e favas, e árvores onde recolhiam frutos, como abrunhos (colhidos de Prunus spinosa), amoras-silvestres (Rubus fruticosus), avelãs (Corylus avellana), figos (Ficus carica) e bagas de sabugueiro (Sambucus sp.)

– Na produção de têxteis, cestaria, óleos e corantes, ou na aplicação fitoterapêutica, os vestígios indicam a utilização de plantas e ervas como linho (Linum usitatissimum), dormideira (Papaver somniferum), cardo-de-Santa-Maria (Silybum marianum) e cardo-beija-mão (Carthamus lanatus).

Além de se dedicarem ao cultivo de várias plantas, estas comunidades já criavam gado, principalmente ovelhas e cabras, e em menor número suínos e bovinos. Nos vestígios animais, há registo de duas espécies caninas e de várias espécies selvagens, incluindo lobos e cervídeos (veados ou semelhantes).

Foram também encontradas evidências de contacto com comunidades de outras ilhas mediterrânicas – por exemplo ferramentas feitas com obsidiana, comum nas ilhas de Lipari (mais a sul, perto da Sicília) e de Palmarola (mais próxima de escavação de La Marmotta).

As canoas e todos estes achados, juntamente com milhares de objetos – desde arcos, colheres, foices e fusos a martelos e machados – indicam uma economia doméstica bem consolidada e um elevado domínio técnico pela população desta que será uma das primeiras comunidades instaladas à beira das águas na região central do Mediterrâneo.