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E se o seu próximo automóvel for feito de nanofibras florestais?

Ficção? Não totalmente. O primeiro veículo parcialmente produzido com nanofibras de celulose derivadas da madeira foi apresentado, em finais de 2019, no Japão, durante a feira automóvel Tokyo Motor Show.

O protótipo nipónico, conhecido como NCV – Nano Cellulose Vehicle (veículo de nanocelulose), reúne mais de 20 parceiros da investigação académica e da indústria, assim como o Governo japonês. Juntos, querem provar que é possível usar nanofibras florestais para desenvolver veículos mais amigos do ambiente, em que os recursos naturais podem substituir materiais de origem fóssil.

O carro de nanocelulose tem várias peças que integram diferentes percentagens de nanofibras de celulose e algumas 100% feitas deste material biológico, renovável e biodegradável, como é o caso do capô, explica o consórcio liderado pela Universidade de Quito. Estas fibras são mais leves, duradouras e cinco vezes mais fortes do que o aço. Em paralelo, como as nanopartículas são mais pequenas do que o comprimento de onda crítico da luz visível, permitem ainda produzir peças transparentes.

De recordar que a celulose é o polímero natural mais abundante no planeta – um componente estrutural das plantas e um dos principais constituintes da madeira. As nanofibras de celulose são, como o nome indica, partículas de dimensões minúsculas – inferiores a 100 nanómetros – cerca de 10 mil vezes menores do que a espessura de um fio de cabelo.

As nanofibras florestais mostram-se promissoras para a indústria dos transportes, em particular nos interiores de veículos, e podem ajudar a reduzir a sua pegada energética e carbónica. A integração de nanocelulose na produção de componentes auto não é suficiente para tornar o sector sustentável, mas é mais uma via para reduzir o consumo de combustíveis fósseis e as emissões de poluentes para a atmosfera.

Menos peso permite reduzir consumo e emissões

A integração destas nanofibras de celulose em componentes deste veículo torna-o cerca de 10% mais leve face ao peso de um veículo sem estes biomateriais, o que lhe permite reduzir o consumo de combustível e o dióxido de carbono libertado durante a condução. Em paralelo, como estes componentes são recicláveis e biodegradáveis, a redução do impacte ambiental abrange todo o seu ciclo de vida.

A redução de peso, que leva à redução da energia necessária para circular e das respetivas emissões de gases com efeitos de estufa (GEE), pode ser um importante caminho para a indústria automóvel e dos transportes em geral, que é responsável por uma das maiores percentagens de consumo de combustíveis fósseis e de emissão de gases nocivos.

Na União Europeia, 27% do total de emissões vieram dos transportes em 2017, mais 2,2% do que no ano anterior, revelam indicadores oficiais publicados no final de 2019. De forma desagregada, 71,7% das emissões são originadas pelos transportes terrrestres, 13,9% pela aviação e 13,3 pelas embarcações.

Em Portugal, os transportes são responsáveis pela emissão de cerca de um quarto das emissões de GEE: 24% em 2015 e 25% em 2016, segundo dados do Portal do Estado do Ambiente. As estatísticas nacionais indicam ainda que o sector dos transportes é aquele que mais energia fóssil consome: responsável por 37,2% do consumo final de energia primária em 2017, com elevada dependência dos combustíveis produzidos a partir do petróleo, nomeadamente de gasóleo, que foi o principal combustível consumido (79%).

Nanofibras fazem a diferença mesmo em pequenos componentes

A utilização de nanofibras de celulose como substituto de matérias-primas de origem fóssil gera benefícios, mesmo quando aplicados em materiais ou componentes que à primeira vista podem parecer pouco importantes. Por exemplo, a substituição de resinas plásticas por fibras de celulose foi alvo de um estudo que concluiu que estas fibras permitem reduzir as emissões em 21,2%. Foram tidas em conta a redução de peso dos componentes plásticos e o ciclo de vida do veículo, pois ao reduzir o peso do veículo, diminui-se o combustível necessário – e as emissões resultantes – durante o tempo em que o veículo se mantém em circulação.

Se o carro de nanocelulose – ou Kyoto project, como também é conhecido – leva a aplicação das nanofibras de celulose a um novo patamar, a utilização deste biomaterial na indústria automóvel está longe de ser inédita.

Embora não se tenham identificado estudos que permitam saber o que representa a aplicação deste nanomaterial no sector automóvel a nível global, várias empresas têm vindo a usar nanofibras vegetais para preencher e reforçar a estrutura de polímeros sintéticos, em particular, no interior de veículos – painéis das portas ou painéis de instrumentos, por exemplo –, sumariza um artigo científico de revisão sobre o tema, que indica que:

– A Mercedes-Benz usou uma matriz de epóxi reforçada com fibras vegetais de juta nos painéis das portas dos seus class-E;

– A Audi usou poliuretano preenchido com linho/sisal no revestimento dos painéis das portas do A2;

– A BMW recorreu a matrizes de fibras naturais para reforçar um polímero acrílico termo endurecido, aplicado também no painel inferior das portas;

– A Toyota tem usado vários polímeros reforçados com fibras naturais nas capas dos pneus sobresselentes do RAUM 2003;

– Fibras de bambu têm também sido usadas para reforçar polímeros aplicados a componentes internos na Mitsubishi.

A integração massiva de nanofibras de celulose em polímeros usados na indústria automóvel é ainda um desafio – em vertentes relacionadas com custos de produção e capacidade de controle das microestruturas, por exemplo. No entanto, as nanofibras florestais mostram-se promissoras em termos de melhoria de desempenhos e na redução de impactes ambientais do sector dos transportes terrestres, mas também navais, aéreos e até aeroespaciais. Já há vários anos que a NASA reconhece melhorias nas propriedades dos materiais que usa nos seus projetos aeroespaciais.

A indústria automóvel não é a única a investir nos benefícios das nanofibras florestais. As aplicações de nanocelulose têm sido testadas – com resultados animadores – em sectores como a eletrónica, a construção civil e a saúde. Estima-se que o mercado convencional de fibras de celulose possa valer 783 milhões de dólares em 2025, valor que pode chegar a mais de 50 mil milhões de dólares se forem consideradas as suas potencialidades nestes sectores emergentes.