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Testemunhos

Companhia das Lezírias: 185 anos a cuidar da natureza

Fundada em 1836, reinava Dª Maria II, a Companhia das Lezírias mantém-se hoje como a mais extensa e uma das mais antigas propriedades agroflorestais em atividade em Portugal. Para conhecer os principais desafios de preservar este património natural, social e económico com quase dois séculos de história, falámos com o seu Diretor Florestal e de Sustentabilidade, Rui Alves.

São mais de 18 mil hectares de ocupação agro-silvo-pastoril entre a Lezíria de Vila Franca de Xira e a Charneca do Infantado. Esta área, maior do que o concelho de Lisboa, alberga desde floresta, vinha, olival, pivots com milho e arrozal a gado bovino e cavalos, passando por barragens e estruturas de apoio a serviços de turismo de natureza. Destas múltiplas atividades, a Companhia das Lezírias retira os proveitos que há muito a mantêm economicamente sustentável.

A área florestal, que se estende por mais de 8,8 mil hectares e se concentra na Charneca do Infantado, dá um dos maiores contributos, com cerca de 30% do valor das vendas da Companhia das Lezírias em 2019. O resultado dos produtos florestais tem vindo a crescer desde 2015 e ultrapassou os 2 milhões de euros em 2019, com a cortiça como principal dinamizadora: gerou mais de 1,1 milhões de euros em 2016 e em 2017 e mais de 1,8 milhões em 2018 e em 2019.

Vendas e serviços prestados em 2019 (%)

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@ Companhia das Lezírias

Esta importância é compreensível, dada a grande extensão da mancha de montado de sobro. O sobreiro (Quercus suber) ocupa 75% da área florestada e partilha a paisagem com o pinheiro-bravo (Pinus pinaster), o pinheiro-manso (Pinus pinea) e o eucalipto (Eucalyptus globulus), três espécies que apoiam a rendibilidade da área florestal da Companhia das Lezírias com madeiras, lenhas e pinhas.

Nenhuma empresa “conseguiria subsistir quase 200 anos se não gerasse excedentes económico-financeiros”, diz Rui Alves, e sem esta dinâmica económica não seria possível manter os perto de 90 empregos essenciais às diversas atividades da Companhia das Lezírias, mas este valor socioeconómico é indissociável da preservação do seu património natural.

“A gestão que temos vindo a pôr em prática procura ter em conta a produção de bens lenhosos e não lenhosos, mas também a promoção da biodiversidade, a qualidade da água e a conservação do solo, porque só faz sentido olhar para a floresta no seu todo”, refere o responsável.

Do modelo de gestão da Companhia das Lezírias consta, por isso, a missão de preservar este território e tentar conservar ou melhorar os múltiplos serviços de ecossistemas que aqui têm origem, indica o gestor, acrescentando que “há uma série de serviços com origem no território, que são tão ou mais fundamentais do que os outros que têm mercado e esta é uma das razões para que uma empresa agroflorestal continue na esfera do Estado”.

A sustentabilidade ambiental é, por isso, considerada um fator de competitividade e de criação de valor igualmente estrutural e “essencial para que a produção possa manter-se nos próximos séculos como nos anteriores, porque se não tivermos planeta, não há empresas, nem pessoas”, sublinha.

Na visão de Rui Alves, equilibrar valor económico, social e natural é essencial – não é sequer uma opção, mas é também uma utopia, uma meta que se procura continuamente sem nunca se alcançar em pleno. “Temos ideia de que a sustentabilidade é algo que se adquire, mas ela é algo que se busca [infinitamente]”, porque há sempre fatores de desestabilização ou situações que implicam perda de resiliência.

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@ Companhia das Lezírias

Valor ecológico e biodiversidade

Com parte do território localizada na Zona de Proteção Especial do Estuário do Tejo e mais de 13812 hectares classificados pela Rede Natura 2000 – incluindo o Montado (Habitat 6310) – a preservação do valor ecológico é prioritária na Charneca do Infantado e em toda a extensão da propriedade da Companhia das Lezírias.

Na Charneca, cerca de 3 mil hectares são geridos mais especificamente para salvaguarda da biodiversidade, que tem a sua vertente mais visível nas cerca de 335 espécies de plantas vasculares, 150 de pássaros, 24 de mamíferos e 11 espécies de outros vertebrados identificadas em estudos de campo.

Várias destas espécies são consideradas vulneráveis ou em risco, como é o caso do rato-de-cabrera (Microtus cabrerae), um pequeno roedor que só vive na Península Ibérica, da Águia de Bonelli (Aquila fasciata) e da Thymus capitellatus, uma planta que só existe no sudoeste de Portugal, na zona do Tejo, Sado e Costa Vicentina.

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@ Companhia das Lezírias

Mais comum é a coruja-das-torres (Tyto alba), que encontra refúgio nesta imensa propriedade e se tornou um dos seus símbolos, dando nome a uma das gamas de vinhos da empresa.

“A Tyto alba é muito emblemática na Companhia das Lezírias. Aqui, em algumas alturas do ano, a abundância desta espécie está entre as mais elevadas da Europa”, conta Rui Alves, explicando que estas aves nidificam na envolvente da Charneca e, “quando juvenis, convergem para a lezíria sul, local de grande concentração de alimento e onde ganham força para se fazerem à vida”. Esta rapina é uma das guardiãs do equilíbrio ecológico dos 146 hectares de vinha, área que se encontra envolta por floresta, que funciona como barreira protetora.

Por serem muitas as espécies de aves a viverem e nidificarem neste território, nasceu o EVOA – Espaço de Visitação e Observação de Aves na Reserva Natural do Estuário do Tejo, um dos projetos que apela tanto aos estudiosos como aos apaixonados pela natureza. Esta é uma forma de “abrir as portas” da Companhia das Lezírias, através de uma oferta turística, que permite aos visitantes descobrir e envolver-se nos diferentes espaços e atividades, desde caminhadas na Charneca a passeios a cavalo, caça e experiências de enologia, inclusive com participação nas vindimas.

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A Companhia das Lezírias recebe anualmente a visita de mais de 15 mil pessoas – exceção para 2020, devido à pandemia – e dada a variedade de atividades acaba por ser “procurada, um bocadinho, por todos”, desde grupos escolares a turistas portugueses e estrangeiros, especialmente americanos, alemães e franceses.

Quanto aos portugueses, ao contrário do que se poderia pensar, muitos vêm de perto. O esforço e o trabalho de muitas gerações contribuíram para tornar a exploração numa referência do país e um motivo de orgulho da região. Embora alguns aglomerados, como Samora Correia e Porto Alto, “tenham vindo a crescer muito como dormitórios, ainda têm grande parte da população que descende de antigos funcionários, de pessoas que nasceram dentro da Companhia, pelo que há uma forte ligação da Companhia das Lezírias com a comunidade envolvente”, conta com orgulho.

Solo e água entre os desafios da gestão

Entre os desafios deste espaço partilhado por múltiplos usos, a conservação do solo é outra das prioridades. O gado, embora desempenhe um papel crucial na gestão da biomassa e consequente redução do risco de incêndio, contribuiu para a compressão dos solos, especialmente na Charneca do Infantado, onde o seu impacte interfere também com a regeneração natural dos sobreiros.

Compatibilizar a criação animal com a conservação dos solos e a regeneração do montado é uma preocupação da gestão, ajudando a que o gado não permaneça todo o ano nesta área. Em abril, os bovinos saem para as pastagens das lezírias, onde permanecem até setembro ou outubro. Em paralelo, delimitou-se “um conjunto de ilhas e de corredores ecológicos dos quais o pastoreio é excluído, para que as várias populações (mamíferos, invertebrados) se possam desenvolver e trocar património genético”, acrescenta o gestor.

Desde 1992 que a área de sobreiro é gerida sob um plano de ordenamento que dividiu a propriedade em nove folhas – termo muito utilizado na agricultura e que consiste na divisão da exploração em parcelas. O objetivo é que anualmente seja feita a tiragem de cortiça “apenas numa das folhas, para tentarmos ter produções mais ou menos equivalentes todos os anos”.

Amenizar as flutuações nos volumes de cortiça disponíveis anualmente é importante num produto com tanta relevância para a Companhia das Lezírias e este processo de ordenamento mantém-se em curso, procedendo-se a ajustes nos anos de descortiçamento.

Nesta zona cruzada pela influência atlântica e mediterrânica, em que o clima tem grandes amplitudes térmicas, a regeneração natural do pinheiro-bravo é outra das preocupações. A regeneração desta espécie “tem muita dificuldade em passar o verão”, refere Rui Alves com base em dados empíricos. Contudo, “não nos faz sentido converter a atividade florestal numa atividade agrícola, ou seja, começarmos a regar mesmo que apenas nos primeiros anos de regeneração”.

Apesar da Companhia das Lezírias estar localizada num dos maiores aquíferos de Portugal, a perspetiva de aumento de episódios de seca, designadamente por efeito das alterações climáticas, desfavorece o pinheiro-bravo em épocas mais quentes. Além disso, o efeito da seca na redução dos níveis de águas subterrâneas pode afetar também o crescimento da cortiça. A carência de água é, por isso, como se identifica no livro “How to balance forestry and biodiversity conservation. A view across Europe”, um dos fatores de ameaça nesta zona à “resiliência deste complexo sistema socioecológico” que é o montado.

“Temos estado atentos e a ver como é que o montado evolui”, refere o Diretor Florestal e de Sustentabilidade da Companhia das Lezírias. Embora vigilante em relação aos efeitos das alterações climáticas, não deixa de alertar para outros perigos: “Preocupamo-nos com questões globais, mas, por exemplo, o impacte local de um javali na regeneração pode ser muito pior”, pelo que os seus focos de atenção implicam questões de longo, mas também de curto prazo.

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@ Companhia das Lezírias