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Testemunhos

Sanguinheira de Codes: produção e conservação em sintonia

A Herdade da Sanguinheira de Codes, no concelho de Abrantes, tornou-se num exemplo de como produção e conservação podem estar em sintonia. Joaquim Pais de Azevedo dá a conhecer como a valorização do solo apoiou a regeneração e o rendimento deste sistema agrossilvopastoril que gere há perto de 25 anos.

Situada na charneca ribatejana, a Herdade da Sanguinheira de Codes está há mais de quatro gerações na família Pais de Azevedo e sempre teve como principal objetivo a produção de cortiça, embora a pastorícia estivesse igualmente presente. Quatro gerações após a fundação, o montado e as ovelhas, complementados por outras espécies florestais, continuam a ser estruturais a este ecossistema agrossilvopastoril.

Nos 620 hectares da Herdade da Sanguinheira de Codes, o montado de sobro estende-se além do que a vista pode alcançar, ocupando mais de 70% da propriedade (mais de 430 hectares). A complementá-lo, há 13% de área de eucaliptal e 3% de pinhal-manso, plantados para a produção de madeira e pinhão, assim como 10% de campos agrícolas.

O rebanho conta em 2024 com 650 ovelhas. Criados em regime de pastoreio extensivo, para a produção de borrego, estes animais são também uma componente central do equilíbrio deste sistema, que só se perpetua quando a relação solo-pastagem-montado é ponderada.

A água cobre 1% da área da herdade, em três barragens alimentadas por nascentes naturais e por uma bacia de recepção das águas da chuva. Ligadas entre si e apoiadas por açudes, integram uma rede que permite circular este recurso essencial e dar de beber ao gado.

“Este sistema integrado e com as várias vertentes em equilíbrio funciona de modo a potenciar-se entre si”, explica Joaquim Pais de Azevedo, que assumiu a gestão da Herdade da Sanguinheira de Codes na viragem do século, iniciando uma nova fase de desenvolvimento desta exploração.

Joaquim Pais de Azevedo formou-se em Engenharia Zootécnica, pela Universidade de Évora, e grande parte da sua vida profissional foi dedicada às indústrias alimentar e de nutrição animal. Em 2000, assumiu a administração da Herdade da Sanguinheira de Codes como sócio-gerente desta sociedade familiar. A par deste percurso, integrou a área associativa, com diferentes contributos e responsabilidades em associações agrícolas e agroflorestais. Em 2017, os resultados do plano de modernização que implementou foram reconhecidos com o Prémio Floresta e Sustentabilidade, na categoria “Boas práticas de silvicultura”.

A pensar no futuro e na continuidade da empresa, Joaquim Pais de Azevedo tem o seu filho, Joaquim Maria, de 28 anos, a trabalhar consigo no “projeto Sanguinheira” desde finais de 2017. Mais uma geração a dar continuidade à gestão deste ecossistema agrossilvopastoril.

O solo como suporte do ecossistema na Sanguinheira de Codes

De meados do século XX até 2000, época em que se aumentou a área de montado com a plantação de 130 hectares de sobreiro (Quercus suber), era praticada uma gestão tradicional. O solo era mobilizado para fazer controlo da vegetação espontânea, semeava-se tremocilha (planta leguminosa e forrageira) para apoiar o pasto e o pastoreio era feito por toda a herdade, sem preocupação pela ordem das intervenções.

De 2000 em diante, Joaquim Pais de Azevedo concebeu e implementou um plano de modernização, com o objectivo geral de melhorar a fertilidade do solo e estabelecer um equilíbrio sistémico entre montado, pastagens e animais. “A ideia-chave deste plano partiu do pressuposto que estes três sub-sistemas produtivos têm o solo como base comum e não faz sentido geri-los como concorrentes, mas antes como complementares”, conta o responsável.

Quando assumiu a gestão da Herdade da Sanguinheira de Codes, encontrou um solo de baixa qualidade, pobre em matéria-orgânica, com elevada acidez e textura ligeira, que acusava fraca capacidade de retenção de água e elevado perigo de erosão.

O solo mereceu-lhe, por isso, especial atenção, sob o pressuposto de que um aumento da sua condição e fertilidade se viria a traduzir de forma positiva nas produções por ele suportadas.

Para levar o plano à prática, a área de montado foi dividida em sete parcelas contíguas. Cada uma foi delimitada por uma cerca e a gestão de cada parcela passou a ser controlada, avaliada e feita em rotação.

Segundo explica o gestor, entre as medidas e práticas do plano de modernização implementado, salientam-se elementos como:

– Criação de um sistema de registo dos sobreiros em produção: Permite conhecer a evolução do número de sobreiros produtores de cortiça, dando alta ou baixa de cada árvore neste sistema de registo, consoante entram em produção ou são eliminadas como caducas. Este registo ajuda também a conhecer a vitalidade dos sobreiros.

– Conhecimento e melhoramento do solo: efetuam análises de solo, periodicamente, em pontos fixos e referenciados. Corrige-se a acidez (pH) de acordo com o resultado das análises. Aduba-se apenas com fósforo e potássio. Prescindiu-se de adubar com azoto uma vez que a pastagem à base de leguminosas faz naturalmente esse trabalho.

Recorde-se que as raízes de plantas leguminosas, associadas aos microrganismos existentes no solo, conseguem fixar no solo o azoto presente na atmosfera. Este é o nutriente mineral mais importante para o crescimento vegetal e as leguminosas apoiam naturalmente esta fertilização biológica que, sem elas, requer o uso de adubos químicos.

– Gestão das árvores: realizam podas de formação apenas das árvores jovens, protege-se a regeneração natural e foram instalados protetores, evitando a influência nefasta que pode ser causada pelos animais (por exemplo, pelo pisoteio).

– Controlo da vegetação espontânea: feito com corta mato e sem mobilização do solo.

– Gestão do pasto: foram instaladas pastagens biodiversas à base de leguminosas, que ajudam a fixar azoto no solo e a alimentar o gado. Procura-se manter o solo sempre coberto, mitigando a erosão, ensombrando o solo no verão e diminuindo a sua temperatura. Estas pastagens autorregeneram-se através das sementes duras que produzem.

– Pastoreio: feito em rotação, com um número de animais adequado à disponibilidade da pastagem que os alimenta, de modo a não comprometer a sua regeneração, bem como a do montado.

Em 2011, a Herdade da Sanguinheira recebeu a menção honrosa “Sustentabilidade do Sobreiro e da Biodiversidade Associada. Anos depois, voltou a ser distinguida com o primeiro prémio “Floresta e sustentabilidade”, na primeira edição desta iniciativa promovida pela Celpa, hoje Biond.

Um sistema circular, que se autoalimenta e sustenta

“Ao aumentar a fertilidade do solo, contribuímos para a melhoria das produções que ele suporta, assim como da saúde das árvores, tornando-as mais resistentes e resilientes, e conseguimos mais e melhor pastagem, o que se reflete num efetivo pecuário mais bem alimentado e mais produtivo”, salienta Joaquim Pais de Azevedo.

Por sua vez, este sistema agrossilvopastoril alcançou um ponto de equilíbrio que contribui para o aumento da fertilidade do solo. “É um sistema que funciona em círculo – que se vai autoalimentando e crescendo”, sublinha.

Esta efeito tem sido confirmado pela monitorização de resultados de cada subsistema, que passou a ser feita de modo a conhecer a sua evolução e implementar melhorias, caso sejam necessárias: “As análises que fomos fazendo revelam que a matéria orgânica foi aumentando ao longo dos anos. Simultaneamente, a mortalidade dos sobreiros foi diminuindo, a pastagem começou a autorregenerar-se e os matos a diminuírem de intensidade. E estes resultados incentivam-nos a continuar e a adequar o efetivo ovino às disponibilidades de alimento natural”.

Para que este sistema seja viável, cada subsistema, por si, precisa de ser economicamente sustentável e esta é também uma constatação feita pelo gestor, confirmada pela contabilidade analítica que efetuam. “Naturalmente, o objetivo é a complementaridade de cada um dos sistemas produtivos, enquadrados num todo, contribuindo para potenciar as produções individuais de cada um e assegurando a sua sustentabilidade”, reforça, complementado:

  • Pretende-se que haja, anualmente, pelo menos uma fonte de retorno proveniente de produtos florestais.
  • A produção de cortiça está dividida em sete tiragens no novénio, variando cada uma delas entre 4000 e 5000 arrobas (uma arroba equivale a 14,7 quilogramas).
  • A produção de eucaliptos, com uma área de cerca de 80 hectares, está dividida em quatro parcelas e anos de corte.
  • A produção de pinha para pinhão ocupa cerca de 20 hectares, dos quais 7 são de regadio. É a produção mais recente e o objetivo passa pela produção de 25 toneladas por ano.
  • As ovelhas, divididas em quatro lotes de parição anual, geram anualmente cerca de 1,2 crias.

Exemplo da evolução do nível de matéria orgânica a partir de amostras dos solos

(5 níveis: Muito Baixo, Baixo, Médio, Alto e Muito Alto)

2008
2013
Amostra 1
Médio
Muito Alto
Amostra 2
Baixo
Alto
Amostra 3
Médio
Muito Alto
Amostra 4
Baixo
Médio
Amostra 5
Médio
Muito Alto
Amostra 6
Baixo
Médio
Amostra 7
Médio
Alto

É com esta visão que se estabelecem as bases da sustentabilidade da Herdade da Sanguinheira de Codes nas suas várias dimensões – económica, social e ambiental, com produções capazes de assegurar emprego e gerar o retorno indispensável às boas-práticas de gestão aplicadas na continuidade dos diferentes sistemas produtivos e dos recursos naturais que o sustentam, perpetuando-os para as gerações vindouras.

Adicionalmente, o modelo de gestão adotado gera inúmeras externalidades positivas. Joaquim Pais de Azevedo refere, por exemplo, o aumento de matéria orgânica no solo, que contribuiu para uma maior retenção de água, por sua vez essencial à saúde das árvores e plantas, assim como à resiliência do sistema aos efeitos das alterações climáticas.

Os benefícios alargam-se aos vários serviços de ecossistema gerados nos 620 hectares da Herdade da Sanguinheira de Codes e que se repercutem muito além dos seus limites, em fatores como a proteção e promoção da biodiversidade, a disponibilidade da água e a fixação de carbono.