Comentário

Sandra Valente

Quais as perceções sobre a floresta? O exemplo de Mação

As decisões e estratégias que afetam as florestas e a gestão florestal em Portugal requerem que se conheçam as perceções sobre a floresta, assim como as motivações e atitudes dos diversos atores que intervêm no território.

O conhecimento sobre motivações, atitudes e perceções sobre a floresta é fundamental na construção e legitimação das políticas públicas e dos mecanismos de apoio ao sector florestal, sendo este um dos desafios que o ForestWISE – Laboratório Colaborativo da Floresta e do Fogo pretende desenvolver nas suas diversas áreas temáticas, em particular na linha de trabalho “Pessoas e Políticas”.

O município de Mação (Região Interior Centro) foi usado como caso de estudo para conhecer as perceções sociais sobre a floresta, gestão florestal e fogos rurais em Portugal. Entre 2010 e 2012 foram inquiridos 5% da população residente com mais de 17 anos (323 inquiridos), e 30 agentes de organizações governamentais e não-governamentais de nível local, regional e nacional, relacionadas com o sector florestal.

A forma como a floresta foi valorizada pelos inquiridos assentou sobretudo no seu papel económico, na produção de bens comercializáveis, mas também ao nível das dinâmicas de emprego local. Os incêndios rurais foram apontados como o principal problema das florestas, associados ao despovoamento, envelhecimento da população e abandono das atividades rurais. A ausência de gestão florestal ativa foi identificada, sendo notório o abandono e o absentismo dos proprietários florestais.

A maior diferença nas perceções sobre a floresta residiu na fragmentação da propriedade. Técnicos e decisores locais, regionais e nacionais consideram-na um dos principais problemas, mas o mesmo não acontece com proprietários florestais e outros residentes inquiridos.

Sandra Valente Interior

A fragmentação da propriedade florestal não foi reconhecida como um problema pelos proprietários florestais e outros residentes inquiridos, e a necessidade de organização dos proprietários e de gestão agrupada não foi identificada como uma possível solução. Já no grupo dos técnicos e decisores locais, regionais e nacionais, a definição de uma estratégia de desenvolvimento rural e o apoio à gestão agrupada foram as soluções mais salientadas.

As diferentes perspetivas e perceções sobre a floresta demonstram a complexidade dos seus problemas e desafios, que exigem o envolvimento de todos os atores. Sendo as pessoas fundamentais na (re)construção da paisagem, é essencial a sua sensibilização, participação e apoio, no sentido de promover uma maior adoção de boas práticas de ordenamento e gestão florestal.

Valorização da função produtiva da floresta

 

Ao nível das funções da floresta, destacou-se, em todos os grupos de inquiridos, a valorização da função produtiva, principalmente ao nível dos produtos lenhosos e não-lenhosos, mas também ao nível da criação de emprego. Aliás, o valor económico da floresta foi reforçado nas questões relacionadas com a floresta que se pretende no futuro, em Mação. Foram evidenciadas as áreas de produção com pinheiro-bravo e com eucalipto, e as áreas de uso múltiplo, com inclusão de outras atividades como o pastoreio, a agricultura e a apicultura, as duas últimas mais referidas pelos técnicos e decisores locais, regionais e nacionais do que pela população.

A qualidade do ar, evidenciada como vantagem em relação à vida nos centros urbanos, surgiu como a segunda função da floresta mais referida, tendo sido identificada pelos técnicos e decisores locais, proprietários florestais e outros residentes. O papel da floresta no combate à desertificação e na conservação da biodiversidade foram apenas identificados pelos técnicos e decisores nacionais, regionais e locais. Já os aspetos ligados ao recreio e ao lazer foram identificados por cerca de 20% dos inquiridos, tendo sido mais evidentes nas respostas dos proprietários florestais e outros residentes.

Outros estudos de opinião pública desenvolvidos na Europa evidenciam uma valorização crescente das florestas pelas suas amenidades ambientais, com a emergência de um tipo de proprietários preocupados com as funções ambientais e a multifuncionalidade da floresta.

Os incêndios representam o principal constrangimento à gestão florestal

 

Dados oficiais e estudos de perceção social são coincidentes na identificação dos incêndios como o principal problema que afeta as florestas da Europa Mediterrânica e, em particular, Portugal. O estudo de Mação não é exceção e os incêndios rurais foram, inequivocamente, apontados como o principal problema das florestas. No entanto, estão-lhe associados outros problemas de difícil separação, como o despovoamento, o envelhecimento da população e o abandono das atividades rurais. A maior diferença de perceções sobre os problemas da floresta entre os grupos de inquiridos reside na fragmentação da propriedade, identificada como um dos principais problemas pelos técnicos e decisores a nível local, regional e nacional, mas que não foi reconhecida como um problema pelos proprietários florestais e outros residentes inquiridos.

Problemas que afetam a floresta e a gestão florestal, identificados pelos grupos inquiridos,

no município de Mação (em percentagem)

Os incêndios de 2003 e 2005 e, mais recentemente, 2017 (ulteriores ao estudo), identificados como eventos catastróficos para o país, afetaram o município de Mação de forma devastadora. Mais de 90% dos proprietários florestais incluídos neste estudo afirmaram terem sido afetados nas suas propriedades pelo menos uma a duas vezes.

Quanto à identificação das principais causas de ignição dos fogos, a maior parte dos residentes inquiridos referiram origem criminosa. Os técnicos e decisores locais dividiram-se entre crime e negligência e a maior parte dos técnicos nacionais e regionais mencionaram negligência. Esta divisão nas perceções é coincidente com os dados oficiais sobre as ocorrências com causa, apurada entre 2003 e 2013, pelo ICNF. Nas causas de propagação para grandes incêndios, as respostas dos técnicos locais e dos proprietários florestais e outros residentes apontaram a falta de limpeza e de operações de desbaste e em segundo lugar as condições meteorológicas (temperaturas elevadas, baixa humidade e ventos fortes). Os técnicos nacionais e regionais também identificaram a ausência de gestão de combustíveis, juntamente com a não compartimentação da paisagem (e.g. áreas tampão e faixas de gestão de combustível) e a dominância de espécies florestais combustíveis.

Emergência de ‘proprietários florestais indiferentes’

 

Este estudo evidenciou uma transição de ‘proprietários florestais clássicos’, com orientação claramente económica, para a emergência de ‘proprietários indiferentes’, cujo interesse na floresta reside em manter as propriedades na família e como reserva económica para o futuro. Esta transição, fruto das mudanças no mundo rural, onde a agricultura e a floresta já não representam a principal fonte de rendimento, foi também registada noutros estudos.

Apesar da maior parte dos proprietários florestais inquiridos em Mação ter referido que mantêm pequenas intervenções nas suas propriedades, a ausência de gestão florestal ativa foi um dos principais problemas identificados, sendo notório o abandono e o absentismo dos proprietários florestais. De facto, este abandono, juntamente com a fragmentação da propriedade, o reduzido contributo da floresta para o rendimento familiar e os incêndios frequentes e recorrentes, têm desencadeado um sentimento generalizado entre os pequenos proprietários: não intervir parece ser a única solução viável para as suas propriedades.

No entanto, a fragmentação da propriedade florestal não foi reconhecida como um problema pelos proprietários florestais e outros residentes inquiridos, e a necessidade de organização dos proprietários e de gestão agrupada não foi identificada como uma solução para os problemas identificados. Já no grupo dos técnicos e decisores locais, regionais e nacionais a definição de uma estratégia de desenvolvimento rural e o apoio à gestão agrupada foram as soluções mais salientadas.

Estas diferenças de perceções sobre a floresta entre os vários atores demonstram a necessidade de uma maior discussão e sensibilização para os desafios que afetam as florestas e a gestão florestal em Portugal, reafirmando a importância do ordenamento da paisagem rural, onde a estrutura da propriedade e os modelos de gestão florestal serão aspetos fundamentais. A articulação entre as políticas e as necessidades e interesses dos atores emerge como fundamental neste caminho, e representa um dos compromissos do CoLAB ForestWISE, em articulação com os seus associados e parceiros académicos, empresariais, da administração pública e outros atores do território.

Julho 2021

O Autor

Sandra Valente é investigadora sénior do ForestWISE (www.forestwise.pt), onde coordena a linha de trabalho ‘Pessoas e Políticas’, e Professora Convidada no Departamento de Ambiente e Ordenamento na Universidade de Aveiro (www.ua.pt/dao). Doutorada em Ciências e Engenharia do Ambiente (Universidade de Aveiro, 2013), esteve ligada nos últimos 20 anos a atividades de I&D, tendo publicado diversos artigos científicos, capítulos de livro e comunicações na área das representações sociais sobre o ambiente e sobre os riscos naturais, do desenvolvimento, operacionalização e avaliação de metodologias de participação pública para a gestão dos recursos naturais, e no domínio das políticas públicas na área das florestas.