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Biodiversidade

Recuperação dos ecossistemas: da promoção da biodiversidade à ação climática

Em plena Década das Nações Unidas para a Recuperação dos Ecossistemas, a ação global afigura-se mais urgente do que nunca. É necessário salvaguardar a biodiversidade e mitigar os efeitos das alterações climáticas, entre outros serviços dos ecossistemas, mas há muito por fazer e as metas globais estão longe de serem cumpridas. Um estudo recente demonstrou uma abordagem eficaz para maximizar os efeitos da recuperação: definir áreas prioritárias de intervenção.

A declaração da Década das Nações Unidas para a Recuperação dos Ecossistemas 2021-30 tem chamado a atenção mundial para a necessidade de recuperar ecossistemas naturais que se degradaram ou foram convertidos para outros usos. Esta iniciativa, partilhada entre o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP) e a Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), pretende contribuir para combater a perda de biodiversidade e mitigar os impactes das alterações climáticas. O objetivo é apelar à ação global para construir um futuro mais sustentável, focado no equilíbrio ecológico, social e de desenvolvimento.

Os ecossistemas terrestres e marinhos providenciam serviços essenciais para a alimentação e a agricultura, proteção contra cheias ou habitats para polinizadores e agentes controladores de pragas essenciais, mas a biodiversidade que está na sua base está ameaçada. Os ecossistemas continuam a ser degradados a uma velocidade sem precedentes devido ao impacte das atividades humanas, que afetam mais de 75% da superfície terrestre livre de gelo, com danos sérios também nos ecossistemas marítimos e zonas húmidas (nestas últimas, 85% da área total já foi perdida). Estima-se que a degradação dos ecossistemas terrestres e marinhos afete cerca de 3,2 mil milhões de pessoas e custe anualmente cerca de 10% do PIB do planeta em termos de perdas de espécies e de serviços dos ecossistemas.

A pegada ecológica mundial atual exige um caminho inverso: é preciso reverter a utilização insustentável de recursos e territórios. Depende de todos nós – especialistas, universidades, governos, empresas e sociedade civil – trabalhar em conjunto para recuperar estas áreas.

Estima-se que existam mais de dois mil milhões de hectares de paisagens degradadas e desflorestadas no mundo com potencial de restauro e que a recuperação de 350 milhões de hectares destas terras degradadas (uma área quase do tamanho da Índia) possa gerar nove biliões de dólares em serviços de ecossistema e retirar até 26 gigatoneladas de gases com efeito de estufa da atmosfera, até 2030.

Dada a importância dos ecossistemas, as ações globais previstas na Década das Nações Unidas para a Recuperação dos Ecossistemas 2021-30 poderão gerar vários benefícios, em linha com os Objetivos de Desenvolvimentos Sustentável (ODS), como soluções naturais para a redução da pobreza (ODS 1), promoção da segurança alimentar (ODS 2) e fornecimento de água potável (ODS 6), estimulação do crescimento económico (ODS 8), mitigação e adaptação aos efeitos das alterações climáticas (ODS 13) e conservação da biodiversidade (ODS 15).

A recuperação dos ecossistemas é o processo de reverter a sua degradação de forma a restaurar o equilíbrio das suas funções ecológicas e produtivas, seja o fornecimento de alimento nas áreas agrícolas, a melhoria da qualidade da água (de lagos e rios) e do ar, a promoção da biodiversidade ou a fixação de carbono. Na prática, isso pode envolver o controlo de plantas invasoras, a promoção da regeneração natural ou a plantação de árvores ou outras plantas, o tratamento de resíduos e a gestão adequada de atividades como a pesca, a mineração e a construção de barragens, entre muitas outras. Em qualquer dos casos, a recuperação demora tempo, exige recursos e obriga ao envolvimento das comunidades para a obtenção de bons resultados.

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Exemplo de limpeza de mato e plantação de carvalho de Monchique (Quercus canariensis) para recuperação do Habitat 9240 – Carvalhais ibéricos de Quercus faginea e Quercus canariensis – Fotos de Nuno Rico

A biodiversidade como base dos serviços do ecossistema

Um ecossistema inclui todos os organismos que nele vivem, assim como as relações entre eles e o ambiente físico – o solo, o clima e a atmosfera. Cada organismo tem o seu papel e contribui para a saúde e produtividade do ecossistema como um todo: qualquer alteração a este equilíbrio tem consequências no seu conjunto.

A biodiversidade está na base dos serviços do ecossistema, que são os benefícios que podemos obter da natureza, sejam estes alimento, madeira, fibras, regulação do clima, estabilidade do solo e purificação da água ou serviços culturais. No entanto, a pressão crescente das atividades humanas têm vindo a afetar a capacidade natural de fornecimento destes bens e serviços. A redução da biodiversidade e da integridade dos ecossistemas, uma das “fronteiras planetárias” estabelecidas pela Real Academia de Ciências Sueca, é uma das questões ambientais graves que a humanidade enfrenta. As alterações climáticas, a desflorestação, a degradação dos solos e desertificação, a sobre-exploração de recursos e a poluição têm vindo a reduzir a diversidade de organismos e os seus habitats. A recuperação dos ecossistemas procura reparar alguns destes danos.

Reconhecida a necessidade de recuperação dos ecossistemas, a sua concretização tem sido menos eficaz. A nível nacional e internacional, têm sido discutidas percentagens de áreas a proteger ou a recuperar, “traduzidas” frequentemente em objetivos e metas para conservar a biodiversidade e estabilizar o clima. As Metas de Aichi para a Biodiversidade 2011-2020, por exemplo, definiram a recuperação de pelo menos 15% de ecossistemas degradados até 2020. Infelizmente, as metas não têm sido alcançadas nem foram definidas áreas de atuação prioritárias.

O que se está a fazer em termos de recuperação dos ecossistemas em Portugal?

Num país em que a propriedade rural está na mão de um número não conhecido de proprietários privados, as iniciativas de intervenção encontram-se à partida limitadas. A nível institucional, há ações de avaliação e de divulgação de informação (como seja o caso da Rede Portuguesa de Restauro Ecológico), mas, à semelhança do Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação, é preciso passar à ação.

Ainda assim, existem algumas iniciativas a destacar, como a Natural Business Intelligence, que trabalha em opções de base natural (biodiversidade, serviços do ecossistema, bioeconomia, entre outros); a Montis, que faz a gestão de zonas marginais abandonadas por forma a aumentar a sua biodiversidade; a Rewilding Portugal que promove a conservação da natureza de forma progressiva; e o projeto de restauro florestal “Plantar Água” que a ANP|WWF está a promover na Serra do Caldeirão.

O projeto “100.000 árvores FUTURO” é outro exemplo de um trabalho de reabilitação ecológica de áreas ardidas, degradadas ou subaproveitadas na Área Metropolitana do Porto, através da plantação e gestão adequada de árvores e arbustos nativos da região. De referir ainda o Programa de recuperação e gestão da paisagem da serra nos concelhos de Monchique e Silves, que junta, entre outras entidades, a Direção Geral do Território e a empresa Biodesign, que tem desenvolvido projetos de valorização e recuperação de habitats. Este programa encontra-se já terminado e com dados disponíveis no website da DGT.

Qualquer que seja a opção de gestão, são necessários recursos para a fazer e só uma economia sólida pode gerar os recursos necessários para a conservação da biodiversidade de que tanto precisamos.

Áreas prioritárias, uma estratégia-chave na recuperação dos ecossistemas

Um dos grandes desafios na definição das áreas a recuperar é equilibrar os benefícios da conservação da biodiversidade e da mitigação dos efeitos das alterações climáticas. As florestas são os ecossistemas com maior potencial para sequestrar carbono, contudo a florestação de ecossistemas não florestais tem impactes na biodiversidade nativa dessas áreas e os biomas não florestais também são necessários para manter a biodiversidade.

Em paralelo, dentro de um mesmo ecossistema, pode haver áreas com o mesmo potencial de sequestro, mas com contributos diferentes em termos de biodiversidade. Por exemplo, uma zona de floresta com espécies ameaçadas que não existem noutro local tem prioridade em termos de conservação de biodiversidade. Para além destes critérios, existe ainda a questão dos custos, diretos e indiretos, derivados da perda de rendimento por alteração do uso do solo, especialmente o agrícola.

Um estudo recente publicado na revista Nature, Global priority areas for ecosystem restoration (2020), mostrou que a focalização dos esforços em áreas prioritárias específicas pode maximizar os efeitos de recuperação dos ecossistemas. A recuperação de 15% de áreas convertidas em terras agrícolas e pastagens em zonas de conservação prioritárias pode evitar 60% das extinções previstas e sequestrar até 299 gigatoneladas de dióxido de carbono, 30% do total do aumento na atmosfera desde a Revolução Industrial. A chave para obter estes resultados é incluir ecossistemas diversificados.

Os autores do artigo fizeram uma análise de 2,87 mil milhões de hectares de ecossistemas convertidos em terras agrícolas e pastagens por todo o mundo, considerando os benefícios da recuperação e os seus custos. Os cinco tipos principais de ecossistemas (floresta, pastagens, estepes, terras áridas e pântanos) foram mapeados nos locais que, segundo se estimou, teriam ocupado antes da sua conversão (para evitar resultados de florestação de zonas não florestadas originalmente), uma resolução que permitiu considerar até as mais pequenas ilhas, muitas das quais são cruciais para a conservação da biodiversidade. Nesse mapeamento estabeleceu-se uma hierarquia de áreas a recuperar (ver mapa), tendo em consideração uma combinação de três critérios: a mitigação dos efeitos das alterações climáticas, o aumento da biodiversidade e a minimização de custos de recuperação.

Os resultados do estudo publicado na Nature mostram que os benefícios e os custos dependem muito da localização e que a definição das áreas prioritárias deve considerar em simultâneo os três critérios referidos. É isso que mostram os vários cenários traçados, que consideram a recuperação de 15% das áreas de ecossistemas convertidos – de acordo com as metas de Aichi:

– um cenário que privilegiasse a mitigação dos efeitos das alterações climáticas, permitiria sequestrar até 335 gigatoneladas de dióxido de carbono (cerca de 34% do aumento reportado desde a Revolução Industrial) e obter um ganho de 65% em termos de biodiversidade potencial (relativamente à alternativa de recuperar 100% das áreas elegíveis);

– já um cenário que privilegiasse a solução menos onerosa levaria a um ganho de apenas 34% do potencial máximo de biodiversidade e 39% do potencial de mitigação dos efeitos das alterações climáticas;

– contudo, a otimização dos três critérios permitiria reduzir custos, alcançar 91% dos ganhos potenciais de biodiversidade e 82% do potencial de mitigação dos efeitos das alterações climáticas.

Mapa de áreas prioritárias para recuperação

(clique na imagem para aumentar)

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Legenda: áreas prioritárias para a recuperação combinando três critérios: aumento da biodiversidade, mitigação dos efeitos das alterações climáticas e minimização de custos.
As áreas convertidas foram escaladas desde a prioridade mais elevada (Top 5, a vermelho escuro) à prioridade mais baixa (85-100%, a azul).

A recuperação dos ecossistemas pode contribuir para mitigar os efeitos das alterações climáticas a um custo relativamente baixo. Embora leve o seu tempo até que os ecossistemas recuperados funcionem a níveis comparáveis aos sistemas de referência que ainda se mantêm conservados, as florestas tropicais conseguem recuperar níveis de 50% dos stocks de carbono de referência após cerca de 20 anos e aos 66 anos atingem 90% dos stocks de referência.

Os autores consideraram ainda que os ecossistemas atualmente intactos se vão manter assim, mas isso vai depender de interações entre a pressão socioeconómica da procura de terras convertidas para produção e as ações tomadas para reduzir esta procura e proteger habitats intactos. Ainda assim, os resultados obtidos são inspiradores:

– a um nível global, não considerando restrições fronteiriças e trabalhando cooperativamente, é possível restaurar até 55% das áreas convertidas em terras agrícolas e pastagens, mantendo o nível de produção agrícola atual;

– combinar a proteção dos ecossistemas naturais existentes com a recuperação de 30% de áreas prioritárias convertidas em terras agrícolas e pastagens permitiria evitar 71% das extinções de espécies e sequestrar 465 gigatoneladas de dióxido de carbono, o equivalente a 49% do CO2 que se acumulou na atmosfera desde a Revolução Industrial.

Estes valores mostram que é possível ir além da recuperação de 15% de ecossistemas degradados (para mitigar as alterações climáticas e combater a desertificação) estabelecidos pela meta 15 de Aichi. E que é possível fazê-lo através da gestão integrada ao nível da paisagem, mantendo os benefícios ambientais e minimizando os conflitos com a agricultura e pastorícia.

A Estratégia de Biodiversidade da UE para 2030 em curso, assim como o desenvolvimento da estratégia global de biodiversidade pós-2020 oferecem uma oportunidade para definir novas ligações entre proteção de ecossistemas, metas de restauro e de biodiversidade. Em simultâneo, a declaração da década 2021-30 como Década das Nações Unidas para a Recuperação dos Ecossistemas pode incentivar novas iniciativas de recuperação de ecossistemas, motivadas pela sensibilização pública para o tema.