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História

Baldios: o passado e o presente das terras comuns

Não se sabe exatamente quando começaram a existir baldios, mas supõe-se que a origem destas terras comunitárias remonte a povos antigos, anteriores à constituição de Portugal. Pelo seu papel na subsistência das comunidades rurais, a sua importância ao longo da história é inquestionável.

O conceito de baldios ou terrenos comunitários pode parecer estranho a quem vive nas cidades, mas não o era para muitos habitantes das comunidades rurais que, há gerações, chamaram seus aos montes e serras a perder de vista e partilharam com vizinhos e familiares estas terras “que são de todos e não são de ninguém”.

Apesar de o termo “baldios” estar associado a terrenos incultos, sem cultivo nem plantações, onde a natureza cresce de forma desordenada, esse não é o sentido histórico do termo, nem a sua definição legal.

Historicamente, estas áreas eram usadas para pastorear o gado, recolher os matos e carumas que lhes serviam de cama e depois para fertilizar as terras de cultivo. Foram as iniciativas de privatização e arborização dos baldios, iniciadas no século XIX, para aumentar a área agrícola e florestal que descreveram estas áreas como incultos, quando “o baldio era, de facto, o suporte do sistema agrário”. Mas foi foi o conceito de “bem comum” aquele que acompanhou o termo ao longo de séculos de dinâmica rural em Portugal e em vários outros países.

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Hoje, os baldios encontram-se legalmente definidos como um tipo de propriedade coletiva (nem pública, nem privada) gerida por comunidades locais, com as suas partes e equipamentos integrantes.

Deste património, que outrora servia de complemento a atividades económicas e a sistemas agrários locais de pendor silvopastoril, beneficiam os membros da comunidade (os compartes, por serem os que compartilham) que, ao longo dos tempos, usaram as terras para pastoreio, plantação e recolha dos mais diversos bens, desde lenhas e mel a cogumelos e frutos silvestres, passando pela caça e pesca de rio.

“O livre acesso a estes territórios integrava-se num sistema comunitário mais vasto, baseado na partilha de estruturas de utilização pública, como os moinhos, as eiras, os fornos, a forja ou o lagar, e em formas de organização e cooperação no trabalho agrícola e pastoril, nas quais a gestão da utilização do solo e aproveitamento dos recursos naturais eram decididas por um Conselho”, pode ler-se em “Transformação da paisagem rural no norte de Portugal”.

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Área dos baldios nas regiões portuguesas, em finais do século XX (áreas em hectares)

Região
Área da região
Área de baldios
% de baldios na região
Área florestal nos baldios
% baldio florestado
Norte
2 128 600
261 198
12,3
233 963
89,6
Centro
2 367 500
207 178
8,8
184 698
89,1
Rib. Oeste
1 199 600
20 704
1,7
10 082
48,7
Alentejo
2 695 500
12 171
0,5<
1336
11
Algarve
507 160
6 122
1,2
2 119
34,6
Total
8 898 360
507 373
5,7
432 198
85,2

Fonte: “Propriedade da Terra e Política Florestal em Portugal

Nota: estão incluídos na área de baldios um total de 24 ha de florestas em dunas e areias da costa, localizados nas seguintes regiões: Aveiro 7 ha; Coimbra 16,079 ha; Leiria 1 ha

Hoje, estima-se que a área de baldios em Portugal ocupe aproximadamente 500 mil hectares, o que equivale a cerca de 5,4% do território continental, revela o artigo “Gestão dos Terrenos Comunitários. Análise dos Planos de Utilização dos Baldios” (2020). Uma análise anterior, feita em “Propriedade da Terra e Política Florestal em Portugal” mostra que estas propriedades comunitárias são particularmente expressivas nas regiões Norte e Centro do país. No Norte, representavam mais de 12% do território, numa área que ultrapassava os 260 mil hectares, e no Centro estendiam-se por 207 mil hectares, mais de 8% da área da região.

A mesma fonte revela que a maior parte da área dos baldios é florestada, com destaque para quase 90% de área florestal nos baldios da zona norte e centro. Em 2022, o ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas refere que os baldios florestados equivalem a cerca de 14% da floresta continental e estão organizados em 115 perímetros florestais.

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Os cerca de 500 mil hectares que hoje ocupam os baldios são apenas uma pequena parte da área de propriedades comunitárias que se estima terem existido no passado: em 1850, seriam cerca de 4 milhões de hectares de terrenos baldios, um valor que coloca em evidência as alterações no uso e propriedade destas terras ao longo dos anos.

Das doações régias às terras sem dono

Há quem remeta a génese dos baldios “para o comunitarismo agropastoril primitivo ou para a tradição comunitária céltica”. Contudo, a sua origem será variada: desde zonas que resultaram de doações régias, no esforço de povoamento após a reconquista, aos terrenos ganhos por povos que reclamaram o direito a terras de uso comum, passando pelos baldios que se formaram a partir de terras sem dono nem uso (terrenos incultos ou maninhos) ou “de propriedade privada caída em prescrição”, explica a Baladi – Federação Nacional dos Baldios, na sua edição “Uma breve história dos baldios e a sua Floresta”.

Independente da data, os baldios são uma realidade com séculos de história em vários territórios europeus – Espanha, França, Itália, Reino Unido, Portugal -, embora com diferentes designações.

Em Inglaterra, por exemplo, estes baldios chamavam-se simplesmente “commons” ou “common lands” (terras comunitárias) e foram consagradas pela Magna Carta, em 1215. Sustentavam as pessoas mais pobres das comunidades rurais, fornecendo-lhes madeira, cama e pastagens para o gado, e chegaram a ocupar quase metade território da Grã-Bretanha. Do século XVI em diante, a nobreza apropriou-se de grande parte dos “Commons” com maior potencial agrícola, deixando às comunidades as terras menos férteis. Hoje, 3% do território são terras comuns, a que é reconhecido elevado valor ecológico.

Em Espanha, são identificados diferentes terrenos de uso comum – “montes comunales”, “montes veciñales en mano común” e “montes particulares de sociedade vecinales” – que variam quanto ao tipo de propriedade. Os que correspondem aos baldios portugueses pela titularidade comunitária são os “montes veciñales en mano común” e a sua origem remontará à época da reconquista Cristã, em resultado de concessões reais e senhoriais. Na Galiza (noroeste da Espanha), onde este tipo de propriedade é mais comum, ocupam cerca de 600 mil hectares, o equivalente a 23% dos terrenos florestais galegos.

A primeira referência conhecida aos terrenos baldios poderá remontar ao século VII, quando o Bispo de Sevilha, Santo Isidoro referiu que “Os antigos chamavam incultos aos terrenos não cultivados, isto é, aos bosques e às pastagens (…). Agora incultos são os que produzem mel, gado e leite e por isso assim se designam.” Em Portugal, os baldios aparecem referidos pela primeira vez no reinado de D. Fernando, século XIV, na Lei das Sesmarias. Promulgada em 1375, procurava fixar a população, ameaçando expropriar terrenos que não fossem cultivados, incluindo baldios de uso comunitário.

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A florestação dos baldios e a oposição das comunidades

Para compreender a importância que estas terras tiveram ao longo da história para a subsistência das comunidades rurais, não podemos esquecer que, em resposta às tentativas administrativas de modificar o seu estatuto e usufruto, a sublevação popular não se fez esperar.

Da Lei das Sesmarias (século XIV, no reinado de D. Fernando), que levou à expropriação de terras que não fossem aproveitadas, até à inventariação dos baldios existentes no país e ao seu arrendamento, resultante de uma política do Marquês de Pombal (século XVIII), os exemplos que motivaram a oposição das comunidades são variados. Os mais recentes estão relacionados com as campanhas de florestação dos séculos XIX e XX.

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A resistência das populações está descrita por Aquilino Ribeiro, no romance “Por quem os lobos uivam”, que retrata os finais dos anos 40 do século XX: “O roubo dos baldios às populações serranas tirou-nos uma fonte vital de receita, destruiu-nos a criação de rebanhos, tirou-nos os estrumes e as lenhas, as pastagens (…). O roubo dos baldios aos povos empurrou-nos da serra para o litoral, obrigou-nos a emigrar, a arrotear a terra ainda com mais suor, mais penúria, mais miséria.”

Apesar de Portugal ter atingido o grau mais elevado de desflorestação no século XVIII, só na segunda metade do século XIX a reflorestação se tornou mais sistemática, com a criação dos Serviços Florestais (1886).

Por essa altura já decorria uma primeira campanha de privatização dos baldios, com o intuito de diminuir a área de incultos e aumentar floresta e agricultura. Entre outros exemplos, foi feita a arborização do Gerês e da Serra da Estrela, em processos muitas vezes acompanhados por manifestações violentas das comunidades contra o desapossamento. Como recorda João Antunes Estêvão, em “A Florestação dos Baldios”, em causa estava sobretudo um problema social, já que não se podia obrigar “à força, e de um dia para o outro, populações inteiras a mudar o seu modo de vida ou a abandonar a montanha”.

Uma nova campanha de arborização realizada no âmbito do Plano de Povoamento Florestal de 1939-1968 reacende a contestação. Por um lado, os objetivos do Estado: travar a erosão dos terrenos com maiores declives e rentabilizar terrenos que considerava improdutivos, cobrindo as serras de espécies resinosas, sobretudo de pinheiro-bravo; por outro, uma arborização feita contra a vontade de quem vivia nas serras, medida que se tornou num símbolo de repressão do Estado Novo, lembra Nicole Devi-Vareta, em “A floresta no espaço e o tempo em Portugal”.

Privadas dos espaços que viam como fundamentais para a subsistência das comunidades rurais e que serviam a tradição do “pastoreio sem terra”, esta campanha motivou, uma vez mais, forte reação por parte das populações locais. As ordens de florestação ignoravam o importante papel então desempenhado pelos terrenos comunitários na subsistência das populações, principalmente daquelas que não tinham possibilidade de arrendar terras. Os baldios forneciam pasto, lenha, madeira, carvão, matéria para estrume, mel e outros produtos.

Novos contributos e formas de gestão dos baldios

Após a queda do Estado Novo, iniciou-se a devolução dos baldios, mas a sociedade portuguesa estava a mudar e, em poucos anos, muitas das comunidades rurais – que se dedicavam às atividades agrícolas, silvícolas e de pastoreio – começavam a desestruturar-se.

O abandono das terras, em particular nas regiões de minifúndio em zonas de montanha, era já uma realidade na década de 70. O êxodo para as cidades retirou destas regiões os mais jovens, com um progressivo envelhecimento dos que ali permaneceram e uma alteração estrutural da organização social e comunitária.

“(…) Nos terrenos comunitários não florestados ou submetidos ao Regime Florestal, durante os regimes anteriores, o êxodo rural e o abandono agrícola, associados à transformação dos sistemas agrícolas e do modo de vida das comunidades rurais, conduziram ao desgaste e ao desmantelamento das práticas tradicionais associadas a estes territórios. Assim, após 1976, a devolução dos baldios aos povos teve fraca expressão no que diz respeito à recuperação da relação tradicional das populações com os terrenos comunitários”, refere Ana Müller Lopes.

Apesar da função original dos baldios ter mudado, as terras comuns permanecem. Uma minoria mantém o perfil de complemento às atividades silvopastoris e agrícolas, outros privilegiaram novas atividades como meio de financiar serviços comunitários, submetendo os baldios total ou parcialmente a arrendamentos ou gestão de terceiros, e outros ainda procuram valorizar as terras, agrupando-as para potenciar sinergias.

A gestão destas terras tem, assim, diferentes configurações e modalidades de gestão. Em 2000, um inquérito abrangendo 820 baldios na região norte identificou terrenos geridos por conselhos diretivos eleitos pelos compartes, controlados pelas autarquias (com e sem mandato de assembleia de compares), e baldios geridos em associação com o estado através, por exemplo, dos Serviços Florestais.

“Os regimes de propriedade comum, tal como os de propriedade pública ou propriedade do Estado podem funcionar bem ou mal. Não é a natureza do regime de propriedade que determina o destino do recurso a ele sujeito mas antes as condições e características do processo de gestão associado a esses regimes”, refere-se na tese “Posse, gestão e uso de recursos em regime de propriedade comum – Os Baldios do Norte de Portugal”.

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Por exemplo, o ICNF assegura a cogestão de mais de 300 mil hectares de terrenos comunitários submetidos ao regime florestal. Por sua vez, a Baladi dinamiza 56 mil hectares (maio de 2022), agregando em dez conjuntos um total de 55 baldios, nas zonas de Braga, Castelo Branco, Coimbra, Guarda, Porto e Vila Real.

Na maioria dos casos, atividades como o pastoreio e a recolha de matos e lenhas deram lugar a novas abordagens, como a exploração florestal – produtos lenhosos e não lenhosos –, as pedreiras ou as energias renováveis.

É com base nas receitas que advêm do aproveitamento dos vários recursos, que “os órgãos gestores destes terrenos têm colmatado algumas das carências sociais das comunidades, criando empregos e promovendo a sustentabilidade”, salienta Armando Carvalho, presidente da direção da Baladi.