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Mata da Margaraça guarda relíquias da floresta primitiva

Joia natural no centro de Portugal, a Mata da Margaraça é uma floresta com vestígios de vegetação primitiva. É lá que se encontra o maior bosque de azereiros (Prunus lusitanica subsp. lusitanica) do país e outras das espécies consideradas como relíquias da floresta Laurissilva no território continental.

Numa encosta de xisto da serra da Picota, coberta por uma floresta frondosa e extensa, encontra-se a Mata Nacional da Margaraça. Fiel guardiã de vestígios da floresta portuguesa antiga, é povoada pelas espécies da floresta Laurissilva que ocorriam profusamente no nosso país antes do último período glaciar (glaciação de Würm, cujo extremo terá ocorrido há cerca de 20 mil anos), quando o clima em Portugal continental era mais quente e húmido.

Localizada nas proximidades da aldeia de Pardieiros, na freguesia de Benfeita, concelho de Arganil, a Mata da Margaraça conta com mais de 50 hectares que se estendem por uma encosta orientada a norte-noroeste, entre os 600 e os 850 metros de altitude.

A Mata faz parte da Área da Paisagem Protegida da Serra do Açor (criada em 1982), onde se incluem duas zonas de interesse especial: a Reserva Natural Parcial da Mata da Margaraça e a Reserva de Recreio da Fraga da Pena. Esta área foi também considerada como Reserva Biogenética do Conselho da Europa (1991) e, mais tarde, integrou o Complexo do Açor (2000). Foi assim que se tornou parte da Rede Natura 2000 e ganhou estatuto de conservação especial – estatuto este que abrange também outros três sítios da mesma Serra: afloramentos do Fajão, cume de São Pedro do Açor e cume da Cebola.

Roteiro Mata da Margaça

© Câmara Municipal de Arganil. Foto de topo também cedida pelo município.

O que desperta maior interesse natural e para a conservação na Mata da Margaraça são os núcleos de vegetação Laurissilva que se mantêm, apesar dos impactes nefastos de vários incêndios (um grande em 2017, que afetou grande parte da sua área). A Mata e a Serra do Açor, têm sido, aliás, alvo de um programa de recuperação pós-fogo, levado a cabo pelo ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, responsável pela gestão da Paisagem Protegida.

Estes núcleos de vegetação Laurissilva – com espécies que perduram na Macaronésia, nomeadamente na Ilha da Madeira – constituem das poucas relíquias que restam em Portugal continental das florestas e matos que cobriam as encostas xistosas da região centro, há milhares de anos, mas que se tornaram raros quando a temperatura se tornou gélida como a dos países nórdicos. À beleza e alto valor natural desta vegetação, que importa preservar, equivale também um elevado valor científico, que apoia o conhecimento sobre a transformação da floresta portuguesa ao longo do tempo.

Roteiro Mata da Margaça

© Câmara Municipal de Arganil

“A Mata da Margaraça constitui um precioso documento da vegetação das encostas xistosas do Centro de Portugal a preservar a todo custo”, escreveu o investigador principal do Departamento de Botânica da Universidade de Coimbra, Jorge Paiva, no Anuário da Sociedade Broteriana, editado em 1981. Saber mais sobre a Mata da Margaraça é o primeiro passo para querer protegê-la.

Um ecossistema diverso e de características pouco comuns

Às 150 espécies de plantas com sementes (espermatófitas) que foram identificadas na Mata da Margaraça, juntam-se fetos, musgos e hepáticas, indica Jorge Paiva, um dos maiores estudiosos da Mata da Margaraça, em “Sítios de Interesse Botânico de Portugal Continental” (Tomo 1, 2020), onde destaca também a grande diversidade de líquenes (fungos), macrofungos e microalgas.

Entre tantas espécies, quem visita a Mata da Margaraça identificará mais facilmente as grandes árvores, como os castanheiros (Castanea sativa) e carvalhos (Quercus robur), mas conseguirá descobrir também os históricos e menos frequentes azereiro (Prunus lusitanica), loureiro (Laurus nobilis), azevinho (Ilex aquifolium) ou folhado (Viburnum tinus), espécies da floresta Laurissilva, que encontraram em recantos deste ecossistema condições para substituir.

Os Azereirais aqui presentes são considerados o maior núcleo populacional da espécie em território ibérico e são um importante legado desta que é uma espécie “Quase Ameaçada“.

Por esta razão, este habitat esteve em foco no projeto de conservação Life-Relict, nascido para conservar testemunhas das florestas de Laurissilva.

Na sombra destas árvores e arbustos, crescem muitas outras plantas, algumas raras, como o martagão (Lilium martagon) ou a orquídea-ninho-de-pássaro (Neottia nidus-avis), e outras invulgares, como a pombinha (Aquilegia vulgaris subs. dichroa).

Por perto não faltam também alguns dos mais apreciados fungos, como os tortulhos (Boletus edulis) e cantarelos (Cantharellus cibarius), assim como muitos outros não comestíveis e até letais.

Entre maio de 2018 e maio de 2019, no âmbito de uma tese em Biologia da Conservação sobre a Mata da Margaraça (Universidade de Évora), Bruno Natário identificou 272 espécies de cogumelos, de 127 géneros e 59 famílias. 116 eram “novas” na Beira Litoral e 74 foram pela primeira vez identificadas em Portugal. Algumas delas são muito raras, comprovando a riqueza de espécies de macrofungos, mesmo após o grande incêndio de 2017.

A sua tese resultou num artigo científico, publicado em 2019, no qual se indica que as espécies identificadas pela primeira vez são típicas de sistemas florestais onde há elevada humidade e a temperatura não excede os 30 ºC em nenhum mês do ano. Estas particularidades, típicas de um clima mais semelhante ao insular, diferenciam o ecossistema da Mata da Margaraça do território da Serra em seu redor.

Roteiro Mata da Margaça
Roteiro Mata da Margaça
Roteiro Mata da Margaça
Roteiro Mata da Margaça

Cortinarius caperatus

Roteiro Mata da Margaça

Crepidotus autochthonus

Roteiro Mata da Margaça

Mycena pseudocorticola

Mata da Margaraça abriga centenas de espécies animais

A diversidade de animais que faz da mata da Margaraça o seu abrigo é igualmente muito elevada. Mais de uma centena de espécies de aves, 18 de mamíferos, oito de morcegos (todos insectívoros), 11 de répteis e seis de anfíbios ilustram-no bem, tal como descreve o investigador Jorge Paiva, que considera a Mata da Margaraça como “o melhor laboratório natural com qualidade didática da região centro do país…”.

Espécies como o açor (Accipiter gentilis) – comum na serra a que dá nome e, por isso, símbolo da Área Protegida –, a coruja-do-mato, o gavião, a águia-de-asa-redonda, a gralha-preta, o pombo-torcaz, a rola e o dom-fafe são algumas das que sobrevoam a mata.

Quanto aos mamíferos, é possível avistar desde o rato-do-campo à raposa, geneta e fuinha. Não faltam os mamíferos voadores, entre os quais merece referência o morcego-de-Bechstein (Myotis bechsteinii), “Em Perigo” segundo o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal.

Nos invertebrados, identificaram-se também várias espécies de protegidas internacionalmente, como a vaca-loura (Lucanus cervus), que integra a Diretiva Habitats e a Convenção de Berna, e as borboletas Euphydryas aurinia e Euplagia quadripunctaria, ambas inscritas na Diretiva Habitats.

Nas linhas de água ocorrem três anfíbios únicos da Península Ibérica (endemismos ibéricos): salamandra-lusitânica, tritão-de-ventre-laranja e rã-ibérica, todas com o estatuto de “Quase Ameaçado” na Lista Vermelha da UICN – União Internacional para a Conservação da Natureza.

Também entre os répteis há várias espécies protegidas pela Convenção de Berna, entre as quais o lagarto-de-água (Lacerta schreiberi) e a víbora-cornuda (Vipera latastei).

Roteiro Mata da Margaça

© Câmara Municipal de Arganil

Roteiro Mata da Margaça

Percorrer os caminhos e a história da Mata da Margaraça

Antes de ser Mata da Margaraça, esta ampla área foi a Quinta de Margaraz, propriedade dos bispos-condes de Coimbra, adquirida por D. Egas Fafe, bispo de Coimbra, durante o reinado de D. Afonso III.

São conhecidas referências à Mata da Margaraça desde esta altura (segunda metade do século XIII). A madeira nela recolhida foi utilizada, por exemplo, para a criação do retábulo da Igreja da Sé Nova, para a construção de uma ponte sobre o Mondego, ambas em Coimbra, e ainda para a construção do Convento de Santo António, em Vila Cova de Alva, ali muito perto, em Arganil.

No século XIX, já com novos proprietários, chegou a acolher 16 famílias de rendeiros, que construíram edifícios, alguns dos quais são visitáveis: além da Casa Grande (do proprietário), a Casa da Eira, a Casa das Lamaceiras, a azenha, o forno de refugo (onde se preparava a madeira para cestaria) e a Casa dos Caseiros foram algumas das construções conservadas.

Para conhecer este património está disponível o percurso pedestre “Mata da Margaraça”, um passeio circular de 1,5 quilómetros, que passa pela Casa da Eira, pelos fornos de refugo e pelo moinho junto à ribeira, permitindo admirar as muitas espécies desta densa floresta.

Roteiro Mata da Margaça

© Câmara Municipal de Arganil

Se é verdade que a Mata da Margaraça pode ser visitada todo o ano, e de forma gratuita, há duas estações que lhe trazem uma beleza adicional: a primavera, com a floração de muitas das espécies que ali ocorrem, e o outono, que traz às folhas ricos tons terrosos. No verão, a Fraga da Pena traz outros apelos: as águas límpidas alimentadas por uma cascata.

Roteiro Mata da Margaça
Roteiro Mata da Margaça
Roteiro Mata da Margaça

Fraga da Pena © Câmara Municipal de Arganil

Outro dos percursos que merece ser descoberto é o da Fraga da Pena. Localizada ente Benfeita e a aldeia de Pardieiros, esta fraga é, na verdade, um acidente geológico que deu lugar a diversas quedas de água sucessivas, desde a barroca de Degraínhos até ao rio da Mata da Margaraça. A grande queda de água final mede 19 metros: é a maior da região e acaba por formar um lago de água gelada e límpida, a que é difícil resistir nos dias mais quentes.

De dificuldade média e uma extensão de 2,5 quilómetros, este percurso pedestre merece umas horas extra, para ir a banhos, para calcorrear os mesmos caminhos que os habitantes da aldeia faziam para chegar aos terrenos agrícolas da quinta da Mizarela e, se a neblina o permitir, para apreciar a ampla vista que se estende sobre o vale e até à serra do Caramulo.