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Água

Seca: como mitigá-la pela recarga das águas subterrâneas

A seca é uma situação recorrente nas zonas mediterrânicas. Por isso, em vez de a encararmos como uma fatalidade, precisamos de soluções que permitam repor, tanto quanto possível, os níveis de águas subterrâneas que podem compensar os períodos de carência. Conheça mais sobre a recarga artificial de aquíferos e a forma como estas soluções podem ser implementadas, num artigo em colaboração com João Paulo Lobo Ferreira.

A seca é um fenómeno natural que tem, por vezes, consequências catastróficas. Em Portugal e em toda a região do Mediterrâneo, onde existe uma estação seca bem demarcada, a redução dos níveis de águas subterrâneas (aquíferos) tem constituído motivo de preocupação, dado o seu impacte nos ecossistemas terrestres, incluindo agrícolas, agroflorestais e florestais.

A recarga artificial de aquíferos foi já recomendada em Portugal, no final de 2022, numa Resolução da Assembleia da República que aconselha o Governo a incentivá-la para reforçar a eficiência hídrica do nosso território. Trata-se de uma recomendação inédita, que constitui um marco histórico na aplicação de soluções de Gestão de Recarga de Aquíferos (em inglês Managed Aquifer Recharge – MAR) e não apenas em Portugal.

O princípio em que assenta a Gestão de Recarga de Aquíferos é simples de compreender: baseia-se no armazenamento de água em sistemas aquíferos durante os períodos húmidos – em que existem excedente hídricos (excesso de água disponível) – para posterior recuperação desta água recarregada, através de captações subterrâneas, durante os períodos de seca, quando a água for mais necessária. Ou seja, canalizar o excesso de água em períodos de abundância para reservas subterrâneas que podem ser depois usadas em caso de necessidade.

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Nos últimos 80 anos, e além do mais recente período de seca (2019-2022), as situações de maior severidade em Portugal Continental aconteceram em 1944/45, 1948/49, 1980/82, 1991/93, 1994/95, 2004/2006, 2011/12, 2915 e 2017/18. Os dados são disponibilizados pelo Observatório das Secas do IPMA – Instituto Português do Mar e da Atmosfera, que regista a evolução histórica das secas desde 1942, com recurso a dados de precipitação. Os números indicam que nos anos recentes se tem “observado maior frequência de episódios de seca meteorológica”, alguns deles fora do período de verão e a afetar maior percentagem do território. Sul e Nordeste têm sido as regiões mais afetadas.

Identificar e implementar as soluções mais adequadas para passar da teoria à prática requer, no entanto, uma sólida base de conhecimento científico. O desenvolvimento desta base científica tem sido apoiado por vários projetos de investigação europeus, alguns dos quais desenvolvidos em países do mediterrâneo, incluindo Portugal. A União Europeia tem apoiado diversas iniciativas de cooperação nesta área, através dos seus Programa-Quadro de Investigação, desde o início do milénio:

Projeto Gabardine (concluído) – Recarga artificial de águas subterrâneas com base em fontes alternativas de água: tecnologias avançadas, integradas e de gestão. Contou com o LNEC – Laboratório Nacional de Engenharia Civil e a Universidade do Algarve como parceiros portugueses;

– Ação de Coordenação Europa-Ásia ASEMWaterNet (concluído) – Plataforma Multistakeholder para a Cooperação Científica e Tecnológica Ásia-Europa (ASEM) sobre o uso sustentável da água, também integrado pelo LNEC.

MARSOL (concluído) – procurou responder à pergunta: como pode este recurso cada vez mais escasso, chamado água, ser explorado e usado de forma inteligente? Participação portuguesa do LNEC, Universidade do Algarve e TARH – empresa especializada em recursos hídricos subterrâneos.

MARSoluT – em curso no LNEC e na Universidade do Algarve, em 2023, aborda diversos desafios técnico-científicos específicos de zonas experimentais de Gestão da Recarga de Aquíferos.

Entre os principais objetivos dos projetos financiados pela Comissão Europeia está a identificação de fontes alternativas de água e a determinação da viabilidade económica e ambiental da sua utilização; a investigação dos aquíferos como fonte principal para o armazenamento sazonal ou de longo prazo destas fontes alternativas de água; e a melhoria do conhecimento sobre as formas de introdução destas fontes de água no aquífero, nomeadamente através da recarga artificial.

Soluções estudadas para mitigar a seca melhorar a gestão da água disponível

A exequibilidade de implementar soluções de Gestão de Recarga de Aquíferos em Portugal ficou comprovada pelos resultados científicos obtidos nos projetos Europeus GABARDINE e MARSOL. Neles foram aplicadas várias tecnologias – como bacias e lagoas de infiltração, infiltração em leitos de rios, poços de injeção direta, canais e filtração pela margem de rio – que permitem infiltrar no subsolo água proveniente de várias origens, como a água de rios, a água residual apropriadamente tratada ou a água do mar dessalinizada.

Os resultados do projeto MARSOL demonstraram que há técnicas de Gestão da Recarga de Aquíferos capazes de nos proteger do excesso de água que provoca cheias e que é possível converter este excesso, por armazenamento em aquíferos, em soluções de mitigação das secas. O projeto demonstrou que a gestão da recarga de aquíferos é uma estratégia sólida, segura e sustentável, que pode ser aplicada com confiança. Procurou ainda estimular o uso de água tratada ou de outras fontes naturais alternativas (como a precipitação em tetos de estufas agrícolas e a sua injeção em noras algarvias) para armazenamento do excesso de água dos anos húmidos em sistemas aquíferos nacionais.

No projeto GABARDINE, foram estudadas diferentes fontes alternativas de água para a recarga artificial de aquíferos, nomeadamente o excedente do escoamento superficial gerado durante eventos de precipitação (em Portugal e Espanha), os efluentes urbanos tratados (na Grécia e na faixa de Gaza) e o excedente de água dessalinizada (em Israel). Nos três casos de estudo enfrentam-se problemas de abastecimento de água devido à sobre-exploração das águas subterrâneas – causada, por exemplo, pela intrusão marinha ou pela poluição devida a más praticas agrícolas – e comprovou-se que a recarga artificial, com recurso a fontes de água alternativas, é uma metodologia viável para a resolução ou minimização destes problemas.

No âmbito destes projetos foram desenvolvidas experiências em dois aquíferos do Algarve, nos sistemas da Campina de Faro e de Querença-Silves (este último é o maior do Algarve), para sustentar uma base científica sobre o método mais apropriado de construir instalações de gestão da recarga de aquíferos nesta região.

Fotos: Experiências de recarga artificial realizadas no Algarve durante os projetos comunitários GABARDINE e MARSOL

No caso da Campina de Faro, procurou-se encontrar uma solução para minimizar os efeitos da poluição difusa por nitratos, causada por práticas agrícolas, tendo sido o principal objetivo desenvolver uma estratégia para a reabilitação da qualidade das águas subterrâneas por recarga artificial.

Além da melhoria da qualidade da água subterrânea em toda a área oriental deste aquífero, pretendeu-se conhecer também a capacidade de infiltração nos sistemas da Campina de Faro e de Querença-Silves. Neste sentido, realizaram-se múltiplas experiências de recarga artificial em noras (cerca de 500 m3 de capacidade de infiltração em 24 horas, numa das noras, com carga hidráulica de 15 m) e em três bacias de infiltração (cerca de 400 m2 de área com capacidade de infiltração de cerca de 400 m3 em 24 horas, com carga hidráulica de 0,20 m). As bacias foram devidamente monitorizadas, para quantificar a capacidade de infiltração de água do rio, ao longo de vários meses, no leito do Rio Seco, tendo-se registado a melhoria da qualidade da água do aquífero a jusante das bacias de infiltração.

No aquífero Querença-Silves, foram feitas injeções experimentais de água no leito do Cerro do Bardo. A água injetada foi proveniente de captações das Águas do Algarve (entidade que colaborou com a disponibilização da água para os ensaios, com cerca de 170 m3/hora, durante 90 horas), tendo-se registado uma capacidade de infiltração de cerca de 15.300 m3 em 90 horas de ensaio. Para se certificar a direção do escoamento foram efetuados ensaios de geofísica pelo LNEC.

Concluiu-se que a capacidade de infiltração de água por recarga artificial nos sistemas Querença-Silves e da Campina de Faro permite:

– no primeiro aquífero, aumentar a disponibilidade de água subterrânea em períodos de escassez

– e no segundo aquífero, melhorar qualidade da água subterrânea.

As diferentes metodologias testadas permitiram ainda a elaboração de um sistema de apoio à decisão de recarga artificial de aquíferos. Complementarmente foi desenvolvido um modelo de otimização para selecionar as técnicas mais adequadas para melhorar a qualidade da água subterrânea – exigida pela Diretiva-Quadro da Água – até 2027 e para minimizar os custos totais.

Para definir as áreas mais adequadas à implementação da recarga artificial, desenvolveu-se no LNEC uma metodologia que resultou na criação de um índice designado por GABA-IFI. Este índice considera características naturais do meio, valores económicos e sociais para identificar as zonas mais propícias à instalação de redes de recarga artificial de água subterrânea, segundo um método desenvolvido com base em casos de estudo realizados na zona ocidental dos dois sistemas aquíferos algarvios já referidos. Os resultados permitiram identificar:

– fontes alternativas de água, como por exemplo a barragem do Arade, nos anos em que esta apresentasse excedentes hídricos;

– zonas com características mais favoráveis para a realização da recarga artificial.

A recarga artificial foi considerada uma boa resposta para resolver não só problemas de escassez de água em aquíferos, mas também de poluição de águas subterrâneas, sendo esta uma das soluções técnico-científicas aconselhadas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas, em áreas agrícolas e florestais. No seguimento destes projetos foi entregue à Comissão Europeia, para disseminação, a MARSOL Policy Brief “Essentials on Managed Aquifer Recharge for policy makers and water managers”.

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Teste de infiltração de água, Rio Seco, Campina de Faro – projeto MARSOL

No projeto MARSoluT (em curso, em 2023) estão a ser abordados diversos desafios técnico-científicos específicos de zonas experimentais de Gestão da Recarga de Aquíferos, nomeadamente:

– os processos físicos (arraste de partículas finas), químicos e biológicos que resultam na menor capacidade do solo para infiltrar a água (diminuição da condutividade vertical do solo) e consequentemente na redução das taxas de infiltração;

– os processos hidrogeoquímicos que afetam a qualidade da água, com foco especial em micropoluentes;

– a monitorização e modelação da infiltração de água e da recarga artificial.

Em paralelo, neste projeto estão em desenvolvimento modelos de transporte de poluentes em águas subterrâneas, pensados para prever o destino de patógenos e poluentes emergentes, assim como as implicações dos processos acima referidos na conceção técnica dos projetos de Gestão de Recarga de Aquíferos, no quadro dos modelos regionais de escoamento superficial e subterrâneo. Pretende-se, assim, dar um contributo científico para o desenvolvimento dos futuros planos de gestão de recursos hídricos, a desenvolver até 2027.

Tal como estes projetos pan-europeus, outros decorrem em diferentes regiões do mundo que enfrentam situações similares de seca e carência de água, contribuindo com ideias e boas-práticas para uma melhor gestão das bacias hidrográficas e dos sistemas aquíferos. É o caso das nove linhas orientadoras publicadas na Austrália, em “Developing Aquifer Storage and Recovery (ASR) Opportunities in Melbourne – Technical Guidance for ASR”:

  1. adotar medidas de gestão sustentáveis,
  2. prevenir danos irreparáveis,
  3. fomentar a capacitação continuada, com demonstrações e aprendizagem contínua,
  4. adotar uma abordagem de precaução,
  5. estabelecer requisitos de qualidade,
  6. definir direitos de extração de água e volumes recuperáveis,
  7. analisar a capacidade de armazenamento nos aquíferos e seus efeitos de interferência local e regional,
  8. promover o uso valorizado dos recursos,
  9. consultar a comunidade e outras partes interessadas.
*Artigo em colaboração

João Paulo Lobo Ferreira

João Paulo Lobo Ferreira é Investigador-Coordenador do LNEC – Laboratório Nacional de Engenharia Civil. Doutorado em engenharia (Dr.-Ing. Habil) pela Universidade Técnica de Berlim, foi anteriormente Chefe do Núcleo de Águas Subterrâneas do LNEC. João Paulo Lobo Ferreira aplaude a Resolução da Assembleia da República n.º 86/2022, de 26 de dezembro, que recomenda ao Governo o incentivo da recarga artificial de aquíferos para reforço da eficiência hídrica em Portugal, mencionada no início do artigo.