Descobrir

Cultura e Floresta

Incenso e mirra: o que são e de onde se extraem?

Conta-se na Bíblia que três homens sábios – os Reis Magos – viajaram de longe, guiados por uma estrela, até uma manjedoura em Belém, para celebrar o nascimento de Jesus. Levaram-lhe como oferendas ouro, incenso e mirra. Ouro todos conhecemos, mas o que são incenso e mirra? Descubra o que os tornou tão apreciados e de onde se extraem.

A tradição cristã conta que três Magos do oriente seguiram uma estrela até Belém, levando a Jesus ouro (representando o nascimento de um Rei), incenso (simbolizando a sua divindade) e mirra (para representar a humanidade e o sofrimento). Usados pelas suas propriedades medicinais, incenso e mirra eram produtos com valor igual ou superior ao do ouro.

Incenso e mirra são resinas aromáticas que provêm principalmente de duas espécies de árvores que crescem nas regiões áridas e semiáridas do nordeste africano e da Península Arábica: a mirra provém da Commiphora myrrha e o incenso da Boswellia sacra.

Estas árvores produzem secreções – resinas ou gomas oleorresinosas – quando os seus troncos e ramos sofrem feridas ou cortes. Na composição destas resinas existem químicos com propriedades que reforçam a imunidade das plantas – propriedades desinfetantes e antimicrobianas, por exemplo – e a sua secreção previne que as fissuras sejam um ponto de entrada ou de ataque por parte de insetos, bactérias ou fungos que lhes podem ser nocivos.

Estas propriedades têm efeitos igualmente benignos em várias condições humanas e os povos das regiões nativas do incenso e mirra começaram a conhecê-las e a valorizá-las para fins medicinais desde muito antes do nascimento de Jesus.

As resinas de incenso e mirra são especialmente valorizadas depois destas secreções solidificarem, quando o seu aspeto lembra pequenos cristais. Além do seu uso medicinal, foram amplamente utilizadas por inúmeros cultos religiosos, como unguentos e em fumigações – queimadas para libertar fumos aromáticos que simbolizam elevação espiritual e purificação.

incenso e mirra

Cristais de resina de incenso e mirra

Incenso e mirra foram dois dos produtos que viajaram pelas rotas comerciais entre o sul da Península Arábica e o Mediterrâneo. Ambos podem obter-se de várias espécies pertencentes aos géneros botânicos Boswellia e Commiphora, respetivamente, embora as mais valorizadas provenham da Boswellia sacra e Commiphora myrrha.

Ao longo da história, as duas resinas têm sido usadas também noutras formulações: em pó, em macerados, em tinturas e em extratos que permitem obter os seus óleos essenciais. Estudos recentes indicam que ambas as resinas são ricas em vários fitoquímicos que continuam a ser usados na medicina tradicional e que se mostram promissoras para a indústria farmacêutica.

No contexto natalício, incenso e mirra são símbolos de valor espiritual e material: o incenso representa a ligação ao sagrado; a mirra evoca o corpo, o cuidado e, simbolicamente, também o sofrimento.

A árvore do incenso

Natural da Etiópia, Somália, Iémen e Omã, a Boswellia sacra é uma pequena árvore (por vezes arbusto) que pode elevar-se entre um metro e meio e oito metros.

Cresce naturalmente nas encostas calcárias, dos cerca de 300 aos 1200 metros de altitude, beneficiando, em alguns casos, do denso nevoeiro que envolve as montanhas costeiras durante os meses de verão, o que permite o crescimento de pequenos bosques nestas zonas desérticas ou semidesérticas.

Esta espécie é cultivada principalmente nas regiões do sudoeste de Omã e em algumas zonas do Iémen, pelo valor do seu incenso, que continua a ser usado localmente e comercializado em todo o mundo.

A árvore do incenso
A árvore do incenso: detalhes das folhas e flores
A árvore do incenso é plantada pela sua resina

Em Portugal – na Madeira, e principalmente nos Açores – existe uma espécie conhecida como árvore-do-incenso (ou simplesmente incenso), por ter flores que libertam um perfume doce e intenso. Trata-se da espécie Pittosporum undulatum e está classificada como invasora no continente e nas ilhas. Nos Açores, tem vindo a dominar os bosques de média e baixa altitude, ameaçando a flora local. Apesar dos nomes comuns pelos quais é conhecida, não tem qualquer relação botânica com a Boswellia sacra.

A árvore da mirra

A Commiphora myrrha é um arbusto ou pequena árvore cujo tronco (geralmente um tronco único) pode elevar-se aos quatro metros. Os ramos terminais são espinhosos, uma característica distintiva do género Commiphora. Tal como a árvore do incenso, a casca de tom claro desfaz-se em finas camadas que lembram folhas de papel.

Ocorre em savanas áridas africanas, na Somália, Etiópia e Quénia, e na Península Arábica, em Omã, no Iémen e na Arábia Saudita.

Encontra-se normalmente em matos abertos de árvores esporádicas, até aos 1200 metros de altitude, em zonas de solos calcários e pouco profundos, onde a chuva escasseia. Convive com acácias e outras espécies do género Commiphora.

A árvore da mirra
A árvore da mirra: detalhe das flores
A árvore da mirra: detalhe dos frutos

Como se obtêm incenso e mirra?

A extração destas resinas de incenso e mirra tem um processo semelhante ao usado em Portugal para resinar os pinheiros: fazem-se pequenas incisões no tronco, das quais brota uma goma oleosa que solidifica em contacto com o ar.

A resina só começa a ser produzida quando as árvores atingem alguma maturidade: esta idade pode variar entre os três a quatro e os oito a 10 anos de vida.

Por exemplo, as árvores Boswellia sacra só começam a produzir resina aos três ou quatro anos de vida e só com mais do dobro da idade costumam começar a ser resinadas. A recolha desta resina é feita habitualmente na época das monções, ficando a secar naturalmente em grutas, durante um período que pode variar entre os 10 e os 20 dias após a extração.

Ao solidificar, a resina de Boswellia sacra tem um tom claro, amarelado-pálido ou esbranquiçado, podendo variar entre amarelados translúcidos, ligeiramente verdes ou dourados conforme a qualidade e o grau de secagem. Já a resina da Commiphora myrrha é mais opaca e tem uma cor mais intensa, que vai do castanho-dourado ao âmbar escuro, com variações acastanhadas ou encarniçadas.

A resina é uma reposta imunitária nas árvore de incenso e mirra

O incenso da Boswellia sacra, que merece referência bíblica, é conhecido pelo nome de “frankincense”, termo que deriva do francês antigo para “incenso puro”. Por sua vez, a mirra obtida da Commiphora myrrha é tradicionalmente designada por “murr” ou “murrh” nas línguas semitas, termo que significa literalmente “amargo” e corresponde à mirra clássica, valorizada desde a Antiguidade no comércio aromático, medicinal e ritual.

Incenso e mirra: usos antigos e novas aplicações

Atualmente, os usos do incenso e mirra incluem rituais religiosos, medicamentos tradicionais à base de plantas e aromaterapia, mas também a incorporação destas resinas, seus componentes e óleos em perfumaria, cosmética e produtos de higiene, assim como em repelentes. Embora continuem a ser bastante valorizados comercialmente, o seu valor não se compara ao que teve no passado, em que chegaram a valer mais do que o ouro.

Conta-se que já no reino mítico do Sabá, cujas menções iniciais remontam ao século VIII a.C., existiria um povo comerciante cuja riqueza era obtida através da exportação de especiarias e de incenso.

Amplamente usado em fumigações nas cerimónias religiosas atuais das Igrejas Católica Romana e Ortodoxa, o incenso já era queimado nos rituais das mais diversas crenças desde o Médio Oriente à China, passando pelo Corno de África e Mediterrâneo, com significados de purificação e elevação. O fumo libertado sempre foi visto como um meio de levar as orações até aos Deuses e de ligar o terreno ao divino.

Socialmente, em palácios e opulentas residências ou como oferenda, o incenso era um símbolo de estatuto: uma fonte de aromas raros e perfumes luxuosos. Esta ideia estendeu-se à Europa, que importou incenso para a sua perfumaria, para captar o exotismo das fragrâncias árabes.

Resina e óleo de incenso

O incenso tem um perfume suavemente cítrico e fresco, com notas leves de pinheiro, limão e madeira. Quando é queimado, sobressai um toque doce e balsâmico.

Na medicina tradicional, nomeadamente em regiões do Médio Oriente e Norte de África, a resina da Boswellia sacra e seus componentes foram amplamente usados para tratar afeções respiratórias (asma, tosse), problemas gastrointestinais e digestivos, assim como inflamações (feridas, úlceras, aftas, problemas dentários, da pele e dores musculares). Alguns relatos populares atribuem-lhe efeitos benéficos na memória e saúde do cérebro.

Estudos recentes confirmam que o incenso é uma importante fonte de bioativos, como os ácidos boswélicos e terpenoides, o que suporta alguns usos tradicionais desta resina: anti-inflamatório, analgésico, antimicrobiano, hepatoprotetor, neuroprotetor, entre outros. Ainda assim, a vasta maioria da evidência científica permanece limitada a estudos laboratoriais ou pré-clínicos.

Cristais de resina de mirra

Na atualidade, a mirra é usada como ingrediente de perfumes e como adstringente e antisséptico para o tratamento de feridas, em elixires orais e pastas dentífricas. O seu cheiro é amargo e quente, com notas de terra, madeira e especiarias.

Povos como os hebreus, babilónios e assírios também utilizavam a mirra durante as cerimónias religiosas. Pensa-se, por exemplo, que os hebreus usavam os óleos dela extraídos para ungir os vasos sagrados dos templos.

Nos usos medicinais, a mirra foi usada tradicionalmente para tratar feridas, úlceras bocais, dores, fraturas, perturbações no estômago, infeções microbianas e doenças inflamatórias. Os seus efeitos e aplicações podem encontrar-se desde a Antiguidade em escritos de culturas como a egípcia, grega, romana e chinesa.

O mais antigo uso da mirra conhecido como antimicrobiano, para tratar infeções dentárias e vermes intestinais, remonta a 1100 a.C., pelos sumérios. Na Grécia, Hipócrates (460 a.C. – 377 a.C), apelidado de “pai da medicina”, recomendou-a para diversos males: por exemplo, para a febre, “Que tome um electuário de grãos de mirra e ananás”; para as doresMisturar mirra e açafrão triturados. Expor ao sol e untar a pessoa que sofre de dores com este preparado que deve estar em recipiente de bronze”.

Muitos registos indicam que a mirra era um dos elementos usados nos rituais de embalsamento da cultura egípcia. As suas propriedades antimicrobianas e antifúngicas ajudavam a preservar o corpo e o seu perfume a disfarçar os maus odores (várias resinas e óleos, que não a mirra, podem ser encontradas em sarcófagos com este mesmo propósito). Curioso é que a palavra portuguesa mirrar, com o sentido de reduzir de tamanho ou definhar, será derivada desta aplicação no embalsamento.

Muitas das referências nestes textos antigos juntam as resinas de incenso e mirra, assim como de outras espécies, como a chamada “sangue de dragão”, proveniente, por exemplo, do dragoeiro (Dracaena draco).