Valorizar

Bioeconomia

Aplicações de cortiça: inovação além das rolhas

As características da cortiça, aliadas à inovação num sector que se tem vindo a reinventar, levam a que esta matéria-prima esteja hoje presente em inúmeras soluções "made in Portugal", para o consumidor final e para as indústrias. A investigação em aglomerados compósitos - nos quais este material da floresta é combinado com outros – continua a alargar o potencial de novas aplicações de cortiça.

Leveza, elasticidade, flexibilidade, flutuabilidade, impermeabilidade e isolamento térmico, acústico e vibrático são algumas das propriedades que permitem o uso da cortiça, isoladamente ou em combinação com outros materiais, em inúmeros produtos e aplicações.

Várias das propriedades intrínsecas da cortiça são há muito valorizadas e a história é testemunha desta versatilidade. Ainda antes de um aproveitamento em larga escala, de pendor industrial, registos do Antigo Egipto e Império Romano mostram que a cortiça era usada em aparelhos de pesca, como vedante, em solas de sandálias e em revestimento de telhados. Curiosamente, algumas destas aplicações permaneceram nos dias de hoje, embora tecnologicamente mais evoluídas. É o caso, por exemplo, das rolhas, dos revestimentos, isolamentos e do calçado à base de cortiça.

Embora atualmente as aplicações de cortiça ganhem novas possibilidades e formatos – desde o revestimento térmico de veículos espaciais até têxteis tecidos em fio com cortiça –, o produto industrial convencional continua a ser o “rei” do sector: as rolhas.

Portugal produz cerca de 40 milhões de rolhas de cortiça por dia, segundo informação da APCOR – Associação Portuguesa da Cortiça ao Florestas.pt. “As rolhas de cortiça são o principal produto que exportamos em termos de valor, ultrapassando, pela primeira vez na história, os 800 milhões de euros de exportações, para mais de 100 destinos”, adianta João Ferreira, secretário-geral da APCOR. Ou seja, as rolhas representaram cerca de 70% do total de 1134 milhões de euros em exportações alcançados pelo sector, em 2021. De recordar que Portugal é o maior produtor e exportador mundial de cortiça, com as empresas nacionais a assumirem uma posição de liderança global na transformação desta matéria-prima.

Ilustração Retirada de Cortiça

Matéria-prima da floresta, a cortiça é a casca do sobreiro (Quercus suber), recolhida em ciclos de extração de nove anos, exceto no primeiro, que só ocorre após  20-25 anos, quando a árvore atinge 70 centímetros de perímetro a 1,30 metros do solo.

Cortiça
Cortiça Amorim

© Amorim

Cortiça usada no espaço

© ESA – European Space Agency

O valor inquestionável das rolhas para o sector e para a economia nacional não desincentiva o investimento em inovação e novas aplicações. É, sobretudo, uma questão de diversificação da oferta e identificação de valor adicional. “Esta é uma estratégica claríssima da fileira: apostar em aplicações de maior valor acrescentado. Diria que, no curto ou médio prazo, nos próximos anos, este é o desafio e é com isto que ambicionamos continuar a crescer”, afirma João Ferreira.

Foi este pendor de inovação e geração de valor que levou, há cerca de 50 anos, à criação da Amorim Cork Composites, dentro da Corticeira Amorim (considerado o maior grupo empresarial de cortiça do mundo), como resposta “à necessidade económica de valorizar matérias-primas de cortiça extraídas na floresta e que não tinham, à data, uma valorização económica interessante, assim como uma crença inabalável dos acionistas de que haveria mais aplicações a explorar para a cortiça do que única e exclusivamente a rolha”, explica Eduardo Soares, diretor de inovação da Amorim Cork Composites. Hoje, a empresa é o principal polo de inovação do grupo, com a missão de “adicionar valor à cortiça”, tanto nas aplicações existentes, como na procura de novos produtos e soluções.

Percurso semelhante teve a Sedacor, empresa do JPS Cork Group dedicada ao desenvolvimento de novas aplicações de cortiça, procurando produtos de maior valor acrescentado a partir dos desperdícios da produção de rolhas e da cortiça de menor qualidade que não pode ser aproveitada para o fabrico de vedantes (atividade principal do grupo). “Temos procurado uma estratégia de diversificação, através de uma abordagem de gestão integrada, desde a floresta até ao mercado de distribuição – queremos aproveitar o melhor que a cortiça nos dá, segundo as necessidades do mercado e as próprias tendências que o mercado nos indica”, adianta Albertino Oliveira, diretor comercial e de marketing da Sedacor, ao Florestas.pt.

Compósitos, o caminho de futuro nas aplicações de cortiça

Estes exemplos empresariais são reflexo do princípio de “cascata” que rege a utilização da matéria-prima em todo o sector. Face à disponibilidade limitada de matéria-prima, dependente dos ciclos de descortiçamento do sobreiro, gere-se a cadeia de valor da cortiça, alavancada também pela capacidade de esta poder ser aproveitada em grânulos que depois se combinam entre si.

Nesta lógica, a cortiça virgem do primeiro descortiçamento (por volta dos 25 anos de cada sobreiro), que não tem qualidade suficiente para rolhas de cortiça natural, pode ser triturada e aproveitada em aglomerados para outras aplicações. A segunda tirada dá origem à cortiça secundeira, que pode ser aproveitada para discos quando a qualidade e espessura permitem, sendo a cortiça amadia, usada para rolhas, retirada a partir do terceiro descortiçamento (quando as árvores têm mais de 40 anos).

Para outras aplicações – como produtos de construção ou peças de design para o consumidor final – podem ser utilizados resíduos da produção de vedantes, agregados em aglomerados. Devido à capacidade de reutilização e reciclagem da cortiça, é também possível triturar aglomerados dos quais se fazem regranulados, prontos para novas utilizações.

Os aglomerados podem ser compostos apenas por cortiça (chamados de “aglomerados negros” ou “cortiça expandida”), sem nenhum tipo de cola ou outros materiais. Segundo Sofia Knapic, investigadora do SerQ – Centro de Inovação e Competências da Floresta, este é “um material completamente natural, o que, ao nível da construção, acaba por ser algo muito interessante de explorar porque vai ao encontro de todas as exigências de sustentabilidade e reciclabilidade, ao longo do ciclo de vida”.

Compósitos Cortiça

Similar à forma de uma colmeia, a cortiça é composta por uma estrutura alveolar de pequenas células, preenchidas por ar (daí a leveza do material), e revestidas a lenhina, suberina (uma espécie de cera natural) e outros compostos químicos de menor expressão.

Compositos Cortiça

O aglomerado negro é normalmente obtido de cortiça virgem. O material é triturado, seco, limpo e cozido a temperaturas elevadas, o que leva à expansão dos grânulos e libertação da suberina, que atua como resina. O resultado são blocos de cortiça expandida e aglomerada que pode depois ser cortada e utilizada.

Por outro lado, é também possível associar a cortiça a outros materiais (“aglomerados brancos”), como aglutinantes poliméricos tradicionais (como colas) ou borrachas (o que permite, por exemplo, aplicações em revestimentos e pavimentos). A combinação da cortiça com outros materiais resulta em novas soluções de aglomerados compósitos que reúnem características de diferentes matérias-primas, o que permite expandir, ainda mais, o mundo de possibilidades para a cortiça – e este tem sido o caminho da inovação no sector.

“A tendência em investigação, hoje em dia, entra mais no domínio dos materiais compósitos. Estamos numa altura em que são precisos novos materiais para tudo”, reforça Luís Gil, investigador na Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG). A título ilustrativo, o responsável recorda um estudo em que foi testado o fabrico de aglomerados com resíduos de embalagens cartonadas de alimentos líquidos. O resultado? Pavimentos duráveis, com rigidez suficiente para desenvolver elementos construtivos e algumas características de condução da eletricidade.

Sofia Knapic reforça: “os aglomerados vieram para ficar, sem dúvida, e são extremamente versáteis. É um sector que tem muito para dar. A lógica é de que quando se combinam materiais, se possam combinar as melhores propriedades de cada um e, quando integro a cortiça, estou sempre à procura da leveza, da inércia, da acústica e de propriedades térmicas interessantes”. A especialista do SerQ exemplifica com alguns projetos nos quais esteve envolvida, como o desenvolvimento de painéis com regranulados e aparas de madeira, entre outro tipo de materiais, ou uma patente de pavimento em que, à superfície, a cortiça interligada com a madeira permitiu obter propriedades antiderrapantes.

O mundo emergente da cortiça

Sector reconhecido pela sua capacidade e investimento em I&D, o ambiente de inovação é partilhado entre empresas e academia. “Há muita investigação, não só nos centros de investigação e desenvolvimento, mas ao nível da própria indústria, que tem sabido apostar por ela própria. Desde há uns tempos para cá que o número de aplicações de cortiça aumentou bastante, porque a indústria tem-se sabido reinventar e aproveitar todo o seu material para explorar os diferentes sectores”, descreve Sofia Knapic.

Por outro lado, a valorização da cortiça tem também conseguido ir ao encontro da procura, num mercado que tem cada vez mais necessidade de soluções sustentáveis, recicláveis e cuja própria estética possa remeter para um produto da natureza e da floresta. De acordo com Eduardo Soares, da Amorim Cork Composites, “existe uma procura cada vez maior por materiais naturais, tanto pelos clientes industriais, como pelo consumidor final, mas os produtos de cortiça podem ser mais caros do que os seus concorrentes, pelo que temos de continuar a fazer um esforço de valorização das características técnicas do nosso produto e de valorização das suas características de sustentabilidade”. É sobretudo numa lógica de ciclo de vida do produto que a cortiça – pela reutilização, qualidade e capacidade de armazenamento de carbono – consegue ganhar competitividade.

Para responder a este mercado crescente, o portfólio de aplicações de cortiça é muito vasto, tanto nas linhas de produção das empresas, como em diferentes estádios de investigação, em laboratório. Das aplicações industriais aos produtos ao alcance direto dos consumidores, descubra algumas das soluções inovadoras de cortiça que vão muito além da rolha de cortiça.

  • Transportes e aeronáutica: do metro de Lisboa até Marte

O metropolitano de Lisboa anunciou, em abril de 2022, que os bancos das carruagens de toda a frota passam a estar revestidos com um compósito de cortiça. A opção permite uma maior resistência à utilização diária – em comparação com o revestimento em tecido – e uma durabilidade prevista de 15 anos, além da facilidade de limpeza.

Este é um exemplo de como a cortiça pode ser aplicada no sector dos transportes, de forma visível ao público. No entanto, há também aplicações que passam mais despercebidas, mas cujo valor técnico é diferenciador. É o caso de aplicações à base de aglomerados de cortiça com borracha, que podem ser usadas na construção de caminhos de ferro como isolamento vibrático.

Usa da Cortiça na Aeronautica

© Rolls Royce

Na área do aeroespacial, a Amorim Cork Composites desenvolveu um material de revestimento para veículos espaciais – usado, por exemplo, no foguetão da Space X –, que permite uma elevada proteção térmica durante a reentrada na atmosfera terrestre. “O material permite proteger o interior do veículo, consumindo ou ardendo a uma velocidade muito controlada, sem perder massa – ou seja, mantém íntegra a estrutura do material, não desaparecendo, ao contrário de outro tipo de materiais nesta área”, explica Eduardo Soares.

A empresa está também a apostar no desenvolvimento de aplicações de revestimento de baterias com um compósito de cortiça, em veículos elétricos e no avião elétrico mais rápido do mundo, da Rolls Royce. Além de serem desenvolvidas em materiais naturais sustentáveis, estas aplicações de cortiça permitem proteger as baterias do risco de incêndio, aproveitando as propriedades de isolamento térmico.

Ainda na aviação, o revestimento com pó de cortiça na pintura de aviões Stealth é um dos componentes que contribui para este tipo de veículos não ser detetado por radar.

  • Novas possibilidades na construção e energia

Depois das rolhas, o sector da construção é talvez aquele que há mais tempo beneficia de aplicações industriais de cortiça, nomeadamente com os revestimentos de pavimento (em edifícios domésticos e industriais) e os isolamentos, sobretudo com aglomerados expandidos de cortiça – que, inicialmente aplicados apenas no interior, começaram a ser cada vez mais vistos no exterior e trabalhados em design, refletindo uma valorização estética desta matéria-prima.

Também neste sector os compósitos estão a dar cartas. A título de exemplo, o secretário-geral da APCOR, João Ferreira, refere a combinação da cortiça com o betão e com estruturas pré-esforçadas, patente no Terminal de Cruzeiros em Lisboa, por exemplo: “são já utilizadas soluções construtivas onde a cortiça está combinada com o betão, com o cimento e outras soluções, o que faz com que o peso destas estruturas se reduza brutalmente”.

Em termos de tecnologias energéticas, as possibilidades de aplicações de cortiça são também vastas.

Transporte Cortiça

Partindo das capacidades de isolamento térmico tão característico desta matéria-prima, é possível, por exemplo, “isolar com cortiça as tubagens dos sistemas solares térmicos para aquecimento de água, alcançando maior resistência aos elementos naturais do que com materiais sintéticos”, pormenoriza Luís Gil, da DGEG. Aplicações inovadoras de cortiça também podem ter um papel relevante nos NZEBNear Zero Energy Buildings (edifícios com elevada eficiência energética, que produzem energia renovável e usam os recursos de forma eficiente), área de estudo a que o investigador do DGEG atualmente se dedica.

  • Uma nova geração têxtil, com fio de cortiça

A introdução de tecidos de cortiça – em diversas peças, com diferentes cores e acabamentos – já é conhecida do mercado e junto do consumidor final. Estas peças de vestuário mais comuns são obtidas através da laminação de folhas de cortiça, coladas sob um suporte têxtil – o que, sendo um primeiro passo nas sinergias entre o sector corticeiro e o sector têxtil, apresenta algumas limitações em termos de versatilidade e da própria sustentabilidade do produto. Mas uma nova geração têxtil com integração de cortiça está a dar os primeiros passos.

Dentro do seu vasto portfólio de produtos, a Sedacor desenvolveu – em parceria com a Têxteis Penedo e após vários projetos de investigação, nomeadamente com a Universidade do Porto e com o CITEVE – Centro Tecnológico Têxtil e Vestuário – um fio de algodão com grande incorporação de cortiça. O produto, denominado CORK-A-TEX, já está a ser produzido em fábrica e abre novas possibilidades à cortiça no sector têxtil, uma vez que o novo fio pode ser usado nas máquinas de fiação existentes para os tradicionais fios de algodão.

Desenvolvido o fio, as aplicações ficam à medida da imaginação: malhas, camisas, roupa de desporto, almofadas, estofos para automóvel ou têxteis-lar, por exemplo. A empresa está também a desenvolver soluções que possam combinar os tecidos laminados de cortiça com o novo fio.

“Comparado ao fio de algodão, o nosso fio de algodão com cortiça é mais resistente à tensão – com certificação do próprio CITEVE –, mais resistente à criação de borboto e mais resistente à fricção, além de outras vantagens já bem conhecidas, como a leveza, a respirabilidade e o isolamento térmico”, explica Albertino Oliveira, da Sedacor. O produto recebeu vários prémios, incluindo o “Techtextil Innovation Award – 2019, categoria Novos Materiais”.

Para já, a fábrica está a produzir amostras do fio de cortiça para vários mercados, com diferentes abordagens, de forma a perceber que tipo de soluções têm maior aceitação no mercado. Além do algodão, a empresa testa atualmente a combinação do fio de cortiça com outros materiais, como o Lyocell (fibra de celulose) e poliésteres reciclados.

Têxtil Cortiça
Fio de Cortiça

© CORK-A-TEX

Seja no fio de algodão que vestimos, no revestimento de uma nave espacial destinada a Marte, no pavimento que pisamos, num objeto de decoração para a casa ou na rolha de um vinho, o certo é que a cortiça está cada vez mais presente, nos vários sectores. As suas características técnicas, de sustentabilidade e de design assim o motivam, a par do trabalho de valorização e inovação do sector nacional da cortiça. Empresários, investigadores e especialistas não têm dúvidas de que este trilho da inovação é para continuar – e que, em combinação com novos materiais, a versatilidade da cortiça não deixará de surpreender e de gerar valor acrescentado para um sector que começa na floresta.