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Testemunhos

Recuperar o passado para construir o futuro na Herdade do Freixo do Meio

Considerada o alimento dos homens invencíveis na Grécia antiga, a bolota foi perdendo o seu estatuto e hoje, para muitos, é apenas sinónimo de comida para porcos. Há, no entanto, quem tenha redescoberto o potencial desta dádiva da floresta autóctone. Na Herdade do Freixo do Meio, é a partir dela que se fazem enchidos, pão, biscoitos, paté, entre outras iguarias biológicas, partilhadas com dezenas de famílias, após um árduo trabalho de recuperação do agroecossistema medieval do montado.

“Temos andado a pisar comida, a desperdiçar toneladas de comida”, foi a conclusão a que chegou Alfredo Cunhal Sendim, proprietário da Herdade do Freixo do Meio, próxima de Montemor-o-Novo (Alentejo), e coordenador da cooperativa a ela associada, quando, há pouco mais de seis anos, viu os resultados do estudo feito em parceria com a Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa.

Com este estudo, “percebemos que há poucos alimentos com a qualidade nutricional da bolota”, explica em entrevista ao Florestas.pt. “Tem um equilíbrio nutricional extraordinário, tem uma gordura rica em ácido oleico, é antioxidante, prebiótica e anti-inflamatória… O que é que nós podemos querer mais?”. Sem glúten, com alto poder antioxidante, rica em fibras e com uma gordura semelhante à do azeite, a bolota é um superalimento.

Dessa conclusão até à criação de uma gama de produtos com a bolota como ingrediente principal foi um passo óbvio. Até porque, com uma área de cerca de 450 hectares de povoamento misto de sobreiro e azinheira na Herdade do Freixo do Meio, o responsável estima que a produção total de bolota se eleve às 450 toneladas por ano. Deste total, têm sido transformadas para consumo humano cerca de cinco toneladas.

“Desde a farinha, que é a base usada para fazer pão, hambúrgueres, enchidos, bolachas ou paté, até às bebidas vegetais e à torra que é um sucedâneo do café, podemos fazer quase tudo com a bolota”, explica Alfredo Cunhal Sendim. “Recentemente, fizemos até um marrom glacé de bolota absolutamente extraordinário!”, conta com orgulho.

Ao todo, a Herdade do Freixo do Meio disponibiliza mais de uma dezena de produtos de bolota, os quais podem ser adquiridos no local, na loja de Lisboa, ou através da loja online com entrega em diversos pontos de norte a sul do país. Em 2020, a venda destes produtos representou um valor “próximo dos 50 mil euros”, mas o lucro, por si mesmo, não é o que move este projeto.

Cooperativa Herdade do Freixo do Meio: consumidores são coprodutores

Organizada como uma “Cooperativa de Usuários”, a Herdade do Freixo do Meio pretende ser, acima de tudo, um lugar de cooperação, inclusão, desenvolvimento pessoal e construção de comunidade. O objetivo é atingir a sustentabilidade económica a par da prática efetiva de políticas sociais e ambientais adequadas.

Neste espaço próximo da aldeia de Foros de Vale de Figueira, onde azinheiras e sobreiros convivem com uma impressionante diversidade de fauna e flora, trabalham atualmente 30 colaboradores (20 mais do que a média na região), que obtêm mais de 200 alimentos de produção própria, biológica e responsável. Estes produtos são depois transformados ou preparados numa das sete micro-agro-indústrias criadas dentro da própria herdade: padaria, transformação de carne, charcutaria, sala de abate de aves, transformação de vegetais, cozinha e lagar de azeite.

Assim, além dos alimentos à base de bolota, a Herdade do Freixo do Meio disponibiliza diversos tipos de carne, ovos, queijo, doces, mel, frutos, cereais, hortícolas, ervas aromáticas, vinho, e muito mais.

Todos estes produtos são vendidos nas lojas da herdade, para alguns restaurantes em todo o país e são também, desde 2015, distribuídos a dezenas de famílias através de um programa de CSA (sigla inglesa para Community Supported Agriculture, que em português significa agricultura apoiada pela comunidade). Este programa, batizado como “Partilhar as Colheitas”, transforma os consumidores em coprodutores, correspondendo a um modelo de produção alimentar e de consumo que tem por base três princípios-chave: a agroecologia, a relação pessoal e a partilha do risco.

“Trata-se de assumir a responsabilidade de uma forma coletiva por aquilo que é um bem comum. Neste caso, o nosso alimento é entregue a 180 famílias que nós já não encaramos como nossos clientes, mas sim como nossos amigos, nossos cooperantes”, explica Alfredo Cunhal Sendim, que é também o mentor deste programa. Cada família subscreve quotas de produção, que correspondem simultaneamente a um compromisso de consumo da sua parte e a um compromisso de produção da parte da Herdade do Freixo do Meio. Em função das quotas subscritas, são semeados, plantados, criados e produzidos alimentos “na medida justa”.

Desta forma, os agricultores planeiam, em conjunto com os consumidores, as colheitas e necessidades de alimentos, reduzindo o desperdício alimentar. Os consumidores, por seu lado, passam a conhecer melhor a realidade do agricultor e recebem alimentos locais e biológicos da época, sempre frescos, a um preço justo que permite ao agricultor a produção sustentável. “O nosso sonho é chegarmos às 250 famílias e voarmos sozinhos. Nessa altura, podemos sair do mercado”, partilha o coordenador da cooperativa.

O regresso à essência ancestral do montado

Este é um sonho que Alfredo Cunhal Sendim não imaginava vir a ter. Apesar de a sua família ser responsável pela herdade há já seis gerações (com uma interrupção em 1975, quando a propriedade foi nacionalizada, tendo sido devolvida 15 anos depois), nunca tinha pensado ser agricultor: a sua grande paixão eram os peixes e o mar. Mas, em 1990, quando o Estado devolveu à família a Herdade do Freixo do Meio, foi a sua mãe, que era filha única, a assumir a responsabilidade pela gestão das terras. Alfredo, então com 23 anos, estava a terminar o curso de Engenharia Zootécnica na Universidade de Évora e decidiu ajudá-la.

Mas o cenário com que mãe e filho se depararam, na altura, era bastante diferente do atual. O modelo de negócio baseava-se na agricultura industrial, com um forte recurso a químicos e máquinas, e o solo estava “completamente degradado”, recorda Alfredo. “Na realidade, já não havia praticamente solo nesta herdade. Embora não parecesse, isto estava tudo bastante próximo de um ecossistema de deserto, em termos de potencial produtivo”.

Em três anos, perceberam que aquela estratégia não era viável e que não se reviam nela. “Dependíamos de apenas três produtos (cortiça, trigo e carne de ovelha), corríamos imenso risco e era um modelo que praticamente não dava trabalho às pessoas. E para a minha mãe, que era assistente social, criar emprego era muito importante”, recorda Alfredo.

A decisão que tomaram foi, segundo conta, “muito simples”. “Ainda sem sabermos bem o que era o montado, decidimos voltar para ele e potenciá-lo ao máximo”. Isto implicou uma enorme alteração em termos de práticas e de estrutura agroflorestal da herdade.

Num lugar onde “já não crescia uma árvore nova há mais de 50 anos”, foram recuperadas culturas que haviam ficado completamente abandonadas, incluindo a vinha, o olival e as hortas. E onde apenas existiam ovelhas, foram introduzidas vacas, porcos, burros, perus, frangos e galinhas.

Alfredo Cunhal Sendim aprendeu assim que “a biodiversidade do montado é superior à de uma floresta tropical”, e quanto mais seres ali existem, maior é a simbiose e melhor o aproveitamento dos recursos. “Essencialmente, o montado é um grande exemplo do sistema de agroecologia, com base na ideia de que nós não estamos aqui para dominar a natureza e para a moldarmos ao nosso jeito, mas sim para servir a natureza e para ser mais um elemento da natureza”, sublinha. Um sistema agrícola ancestral que permitiu, ao longo de 800 anos – e até cerca de 1950 – que o solo de uma região com um clima tão adverso como o Alentejo fosse fértil, e que permite que volte a sê-lo agora, 70 anos depois.

Partilhar a paisagem, o conhecimento e o bem-estar

Todo este percurso e aprendizagens foram transformando a Herdade do Freixo do Meio e também o seu proprietário. De apaixonado pelo mar passou a amante das árvores, e uma das suas maiores preocupações é a desertificação do território nacional. “Mais de 50% do nosso país está, além de desertificado, abandonado, sem produzir absolutamente nada. Temos uma emergência climática à porta, temos uma emergência de perda de biodiversidade, e é preciso percebermos que temos todos uma responsabilidade tremenda nas mãos”, alerta. “A maioria das pessoas ainda não tem consciência disto, mas temos de ajudá-las a perceber que, cada vez que matamos uma árvore, estamos a matar-nos a nós próprios. A árvore é o grande milagre deste planeta”.

Assim, uma das apostas da herdade continua a ser a reflorestação. “Nós não queremos ter um metro quadrado sem árvores”, assegura o responsável pela Herdade do Freixo do Meio. Para alcançar esse objetivo, têm realizado inúmeras “experiências a nível ecológico”, como a implementação de técnicas de restauro dos ecossistemas resultantes dos conceitos de Permacultura e Agroecologia, nomeadamente através do sistema Keyline (que se baseia na gestão da água no solo e permite criar um solo mais fértil e profundo em poucos anos).

Outra das apostas tem sido o desenvolvimento e partilha de todo este conhecimento, através da promoção e cooperação com a investigação científica existente na área, e também da organização de inúmeros workshops, ações de formação, eventos temáticos e até acampamentos pedagógicos, tudo na Herdade do Freixo do Meio.

O espaço está ainda aberto a todos quantos queiram descobri-lo, uma vez que a “partilha da paisagem” é também um dos pilares no qual a cooperativa assenta.

Os habitantes da aldeia de Foros de Vale de Figueira já são da casa e utilizam frequentemente a herdade para praticar desporto e passear nos seus tempos livres. Mas todos são bem-vindos, podendo optar por fazer visitas autónomas ou guiadas, almoçar na cantina ou pernoitar numa das casas de campo. Os hóspedes têm a oportunidade de integrar uma das equipas de trabalho da herdade e acompanhar os produtores nas suas tarefas diárias.

Para quem quiser levar o seu conhecimento mais longe, é possível inscrever-se numa das experiências lúdico-didáticas e aprender a amassar o pão alentejano, explorar a versatilidade da cortiça, ou descobrir como nascem os famosos alimentos de bolota, redescobertos na Herdade do Freixo do Meio e prova de como os produtos agroflorestais podem, e devem, ser recuperados para construir um futuro mais sustentável.

“Os sistemas, tanto ancestrais como os mais inovadores, que se desenvolvem sobre uma estrutura estratificada de árvores – principalmente aqueles que o fazem de uma forma dinâmica respeitando a sucessão natural das espécies -, geram comprovadamente mais emprego, mais excedentes, mais rendimento, mais bem estar das populações, mais coesão social, mais saúde, mais biodiversidade, mais solo, mais eficiência, melhor clima, mais sequestro de carbono, mas principalmente mais felicidade para aqueles que se integram neles”, escreveu Alfredo Sendim no blog da Herdade do Freixo do Meio.