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Fogo

O uso do fogo em Portugal: da tradição à técnica

O fogo é um processo ecológico que molda a paisagem há milhares de anos, estando o uso do fogo tradicionalmente associado à agricultura, pastagem e florestas. Considerado hoje por muitos como um agente de destruição, o fogo, apoiado por técnicas consolidadas, continua a desempenhar um papel relevante, nomeadamente na prevenção de incêndios. Fique a conhecer mais sobre este tema neste artigo escrito em colaboração com a estudante Mariana Carvalho.

O fogo é um fenómeno natural que condicionou a existência e a distribuição das florestas e de outros tipos de vegetação ao longo de milhões de anos. Contudo, o uso do fogo de forma intencional, para aproveitar a energia da sua biomassa, é mais recente.

Como o fogo é parte integrante da natureza e paisagem, é difícil precisar quando terá começado a ser usado de forma regular e intencional, mas existem vestígios arqueológicos de carvão que mostram controlo do fogo há cerca de 790 mil anos.

Usado como ferramenta, permitiu cozinhar alimentos, manter os predadores afastados, alterar matérias-primas e modificar propositadamente a ocupação natural do solo. Pensa-se que a possibilidade de cozinhar alimentos, decorrente do uso do fogo, contribuiu inclusive para a evolução dos hominídeos e a emergência da espécie humana, com impactes na sua evolução física, cognitiva e social, bem como na ocupação e modulação da paisagem.

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Ao longo dos tempos e pelo uso do fogo abriram-se clareiras em áreas de vegetação natural, libertando terras para cultivo e para a instalação de aldeias, eliminou-se restolho, queimaram-se sobrantes e renovaram-se pastos.

No território que hoje é Portugal, “os dados paleopalinológicos e a paleo-história demonstram o impacto da pastorícia no coberto vegetal. Preponderantemente florestal na primeira metade do Holoceno, a paisagem portuguesa foi progressivamente transformada em agrossistemas, com a introdução da economia agropastoril. Trazida por populações provenientes do mediterrâneo oriental, por volta do VI milênio a.C., a economia agropastoril fazia uso do fogo para libertar os solos, empurrando as florestas para áreas cada vez mais marginais e longínquas dos povoados”, pode ler-se em “De sol a sol: dois estudos pastoris de prevenção de incêndios rurais”.

O pastoreio precisava do fogo para renovar as plantas, enquanto a queima de sobrantes agrícolas permitia fertilizar o solo. Estes conhecimentos tradicionais mantiveram-se durante séculos.

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O uso tradicional do fogo pode definir-se como o fogo utilizado pelas populações com o objetivo de eliminar sobrantes de atividades agrícolas ou florestais, promover a acessibilidade, o pastoreio ou a caça. Esta visão do fogo enquanto ferramenta ancestral, integrada nos sistemas tradicionais que modelaram a paisagem, foi-se perdendo, mas o uso do fogo para queima de sobrantes agrícolas e florestais, assim como para renovação de pastagens ainda perdura em Portugal. Para promover a compreensão publica e a segurança destas atividades, o Estudo Técnico “O Uso do Fogo em Portugal – tradição e técnica” recomenda que o primeiro passe a ser denominado como “uso popular do fogo” e que o segundo seja integrado no “fogo técnico”.

O advento do fogo técnico

As primeiras referências conhecidas ao uso do fogo em zonas florestais, em Portugal, datam de meados do século XVIII. Umas delas é do Regimento do Guarda Mor do Pinhal de Leiria, mandado publicar pelo rei D. José I, em 25 de julho 1751. Embora sem apoio em conhecimentos técnico-científicos, esta utilização “proto-técnica” do fogo no Pinhal de Leiria já tinha como objetivo a gestão de combustíveis no âmbito da prevenção de incêndios, tornando Portugal num dos pioneiros do uso do fogo na gestão silvícola.

O fogo continuou a ser uma ferramenta de gestão dos ecossistemas, inclusive por parte da administração florestal, durante a primeira metade do século XIX. Por essa época, incêndios de maiores dimensões, iniciados acidentalmente a partir do uso do fogo tradicional, tinham começado a causar prejuízos e preocupação, pelo que nas Matas do Estado foram dados os primeiros passos na criação de sistemas de defesa da floresta contra incêndios.

Embora as primeiras punições que se conhecem para quem queimasse floresta sejam muito anteriores – datam da Idade Média – foi já no início do século XX que aumentaram as restrições ao uso tradicional do fogo, na sequência de alterações sociais que mudaram também várias das práticas e dinâmicas rurais. Nessa altura, foram impostas limitações à utilização dos terrenos baldios de uso comunitário e procedeu-se à arborização destas áreas, o que intensificou os conflitos entre o Estado e as populações rurais que dependiam destas terras e ali aplicavam o fogo tradicional.

A área de floresta vai aumentando ao longo do século XX, boa parte como resultado das políticas de florestação dos baldios, feitas em larga escala com pinheiro-bravo (Pinus pinaster), e esta expansão acaba por criar áreas contínuas e vastas, com acumulação de combustíveis e mais vulneráveis ao fogo. Foi, por isso, em povoamentos de pinheiro-bravo que se implementou o primeiro programa de gestão de combustíveis com fogo controlado.

Uso do fogo técnico: avanços e recuos na prevenção de incêndios

Os primeiros ensaios portugueses de utilização de fogo controlado tinham decorrido entre 1976 e 1981 nos perímetros florestais de Entre Douro e Minho e foi nesta zona que, em janeiro de 1982, este programa pioneiro foi posto em prática. Entre 1990 e 1993, os Serviços Florestais efetuaram várias intervenções com uso de fogo técnico em povoamentos florestais jovens, tendo estas ações passado a ser pontuais e esporádicas a partir de 1994.

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O fogo técnico é descrito na legislação nacional como o uso do fogo que comporta as componentes de fogo controlado e de fogo de supressão. O fogo controlado tem a gestão de combustíveis como principal função e está definido pela legislação nacional (DL n.º 124/2006, de 28 de junho) como “o uso do fogo na gestão de espaços florestais, sob condições, normas e procedimentos conducentes à satisfação de objetivos específicos e quantificáveis e que é executada sob responsabilidade de técnico credenciado”. O fogo de supressão é o “uso do fogo no âmbito da luta contra os incêndios florestais” e consiste em técnicas de extinção de incêndios através da utilização de fogo, localizado estrategicamente para o efeito.

A investigação científica acompanhou os trabalhos dos Serviços Florestais desde 1981, ano em que foi apresentado no Instituto Universitário de Trás-os-Montes e Alto Douro um plano de fogo controlado em pinhal-bravo – para ser estudado e monitorizado. Diversos programas de financiamento permitiram aprofundar o conhecimento, que foi aplicado na prática através de projetos de experimentação, da formação de técnicos e da criação de grupos especialistas em fogo controlado.

Em 2006, foi formado o primeiro Grupo de Especialistas em Fogo Controlado – GeFoCo, com a missão de dinamizar o uso do fogo em áreas públicas e comunitárias, implementando faixas e de mosaicos de gestão de combustível. Este grupo foi extinto por questões orçamentais em 2010, mas no ano seguinte foram criadas oito Equipas de Fogo Controlado (EFC) para desenvolver ações de promoção e execução de fogo controlado, em particular nos Perímetros Florestais.

A procura por formação nesta área promoveu o desenvolvimento de cursos e formadores em fogo controlado. De acordo com valores da antiga Autoridade Florestal Nacional (AFN), o número de técnicos credenciados em fogo controlado era de 88 em fevereiro de 2011, mas tinha passado a 133 em agosto de 2012 (com destaque para os técnicos dos Gabinetes Técnicos Florestais). Segundo dados do ICNF – Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, existiam 186 técnicos habilitados em outubro de 2020. Em 2022, os dados do ICNF totalizavam mais de 300.

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Embora o número de técnicos tenha vindo a crescer, a área tratada com fogo controlado em Portugal manteve-se em torno dos mil hectares anuais entre 2014 e 2018. Em 2019, a área intervencionada aumentou para cerca de 3500 hectares, resultado da aprovação do Programa Nacional de Fogo Controlado (PNFC) em 2017 e da abertura de linhas de financiamento para ações de fogo controlado no âmbito da prevenção de incêndios.

Recorde-se que a preocupação com os incêndios rurais e a necessidade de gerir o combustível florestal (biomassa) a uma escala mais alargada levaram à criação do Programa Nacional de Fogo Controlado e ao correspondente Plano Nacional de Fogo Controlado em 2017. A decisão de constituir este Programa e Plano revela uma consciencialização sobre as alterações sociodemográficas ocorridas e sobre seus impactes nas áreas rurais, incluindo o despovoamento e envelhecimento da população rural e o consequente desaparecimento de práticas e usos do solo tradicionais, a falta de gestão do território e a acumulação de biomassa vegetal, assim como os efeitos das alterações climáticas, com uma maior frequência de eventos extremos – por exemplo, secas.

Em 2021, a área tratada com fogo controlado totalizou 3942 hectares, número divulgado pelo Governo, num comunicado que refere um aumento nas várias medidas de prevenção de incêndios face a 2020: mais 75% na execução da rede primária e faixas de interrupção de combustível (7336 hectares) na criação de mosaicos de gestão de combustível (16 mil hectares) e nos caminhos florestais (criados mais 4 mil quilómetros).

*Artigo em Colaboração

Mariana Carvalho

Mariana Carvalho é estudante de Biologia, licenciatura que frequenta no ISA – Instituto Superior de Agronomia. Colaborou com a plataforma Florestas.pt na elaboração deste conteúdo no âmbito dos estágios de verão alumnISA.