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Água

Restauro fluvial: a importância de recuperar rios e ribeiras

Alvo de crescentes pressões, principalmente resultantes das atividades humanas, muitos sistemas ribeirinhos encontram-se degradados e a perder as suas funções naturais. Conheça como o restauro fluvial pode ajudar a reverter esta perda de valor ecológico dos nossos rios e ribeiras, assim como algumas das intervenções que têm sido feitas em Portugal.

O restauro fluvial tem por objetivo promover o regresso dos ecossistemas ribeirinhos ao seu estado original ou a uma condição próxima, através de alterações estruturais que permitam reduzir as pressões a que estão expostos e recuperar as suas funções naturais, beneficiando os ecossistemas e as populações que deles dependem, incluindo as populações humanas.

Muitas das pressões que têm levado à contínua degradação destes ecossistemas devem-se às atividades humanas, desde o desenvolvimento urbano às alterações climáticas e à procura crescente pelos serviços proporcionados pelos rios, como a procura por água potável para consumo humano, para rega ou produção de energia hidroelétrica.

Estas pressões podem fazer-se sentir a diferentes escalas: a mais ampla acontece ao nível da bacia hidrográfica, através de alterações climáticas, alterações no uso do solo e regulação de caudais por barragens, por exemplo, e a mais específica ao nível dos troços de rios e ribeiras, com a degradação da vegetação que envolve os cursos de água (galerias ribeirinhas ou ripícolas) e a alteração dos padrões de escoamento (regime natural de caudal).

A esta degradação está associada a perda de importantes funções naturais dos cursos de água, como o controlo de cheias, a regulação da erosão, o transporte de sedimentos e nutrientes, a purificação da qualidade da água e a manutenção dos habitats de água doce e da sua biodiversidade.

Refira-se que a contínua degradação dos habitats fluviais e a perda das suas funções conduziu globalmente, desde 1970, a um declínio de 85% na biodiversidade das comunidades de água doce, de acordo com os dados do relatório Living Planet 2024, da WWF – World Wide Fund for Nature.

O restauro fluvial é uma forma de travar e inverter estas tendências de perda e degradação, contribuindo para avançar no caminho de vários Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), como, por exemplo, os ODS 6, 7 e 15: “Água potável e saneamento”, “Energias renováveis e acessíveis” e “Proteger a vida terrestre”.

Restauro Fluvial: zona a montante do Rio Sabor

Zona a montante do Rio Sabor, afluente do rio Douro, num troço localizado na Freguesia de França, Município de Bragança. © Ana Filipa Filipe

Intervenções e técnicas de restauro fluvial

O restauro fluvial é um processo dinâmico, que pode seguir uma abordagem passiva, ao atuar sobre a fonte de degradação do ecossistema, ou ativa, quando se intervém sobre o habitat degradado, utilizando várias técnicas que visam aproximar o ecossistema ao seu estado original.

Consoante o diagnóstico, a escala de atuação e os objetivos que uma intervenção se propõe alcançar, existem diferentes componentes a considerar e soluções a implementar.

Refiram-se cinco exemplos de soluções à escala local, mais precisamente ao nível dos troços de cursos de água:

  1. Restaurar a conectividade longitudinal dos rios e ribeiras, eliminando barreiras obsoletas (açudes, por exemplo) que impedem o regime natural dos caudais. Esta é uma das medidas destacadas pela Lei do Restauro da Natureza para a renaturalização dos caudais, permitindo a livre circulação de espécies de peixes de água doce e migradores, e o transporte de sedimentos, matéria e energia. Enquadram-se nesta vertente inúmeras atividades de limpeza, remoção e desobstrução.
  2. Estabilizar e consolidar os taludes fluviais, pela colocação de estruturas que ajudem a prevenir a erosão e contribuam para a estabilização e coesão superficial e/ou profunda dos taludes. Existem inúmeras técnicas, que diferem em função das características do local (inclinação do terreno e escoamento, por exemplo) incluindo, entre outras, estacas vivas cravadas no solo, ramos entrelaçados entre estacas, feixes de ramas vivas e mortas grampeados ao solo, rolos de fibras naturais.
  3. Controlar e remover espécies vegetais invasoras, nas margens e nas águas, com atividades que abrangem o corte e limpeza de espécies arbóreas, como as acácias (Acacia spp.); arbustivas, como as canas (Arundo donax) e silvas (Rubus spp.); e herbáceas, como os jacintos de água (Eichhornia crassipes) e a erva-pinheirinha (Myriophyllum aquaticum).
  4. Remover resíduos, com limpeza e retirada de materiais naturais e artificiais que contribuam para a poluição, o assoreamento e a perda de habitats e biodiversidade.
  5. Recuperar as galerias ribeirinhas, com plantação e sementeira de espécies bem-adaptadas às caraterísticas do local (morfologia, clima, geologia e hidrologia) e à humidade do solo das margens, nos vários estratos de vegetação, incluindo as chamadas espécies ripícolas (ou ribeirinhas) de árvores nativas que incluem, entre outras, os salgueiros (Salix spp.), os freixos (Fraxinus spp.) e o amieiro-ibérico (Alnus lusitanica). O objetivo é estabilizar os solos ao longo das margens, criando corredores verdes que promovam a cobertura e o ensombramento, assim como a quantidade e qualidade dos habitats e micro-habitats. Neste processo é necessário assegurar a sanidade dos materiais de reprodução vegetal (o amieiro, por exemplo, tem sido bastante afetado pela translocação de plantas de viveiro infetadas).
Exemplo de intervenções de restauro fluvial

Instalação de rolos vegetados na margem (à esquerda). © foto de Ana Mendes. Desenvolvimento da vegetação quatro meses após a respetiva instalação (à direita). © CIREF – Centro Ibérico de Restauro Fluvial.

As operações de reabilitação fluvial devem considerar três componentes que se interligam, recomenda a “Estratégia Nacional de Reabilitação de Rios e Ribeiras”: hidráulica e estrutural de correção fluvial; restauro ecológico, com reabilitação e requalificação dos ecossistemas ribeirinhos; social, com ações de educação, capacitação e participação pública ativa. Saiba mais sobre as três componentes da reabilitação fluvial e o tipo de intervenções de cada uma.

O exemplo do projeto AQUADAPT: intervenção em 3 ribeiras

O AQUADAPT – “Ecossistemas Fluviais à Prova de Alterações Climáticas para uma Gestão Sustentável” é um dos projetos que implementou iniciativas de restauro fluvial em Portugal, no âmbito de uma atuação mais vasta, de mitigação e adaptação dos ecossistemas fluviais às alterações climáticas.

As suas intervenções foram efetuadas em três pequenos cursos de água de duas bacias hidrográficas, recorrendo a Soluções Baseadas na Natureza (soluções que recorrem a materiais e processos naturais, muitas vezes apresentadas com a sigla NbS, do inglês Nature-based solutions), para reforçar a capacidade de adaptação dos seus ecossistemas:

– Ribeira de Ximassas, na bacia do Tejo (município do Fundão)

As ações de restauro fluvial implementadas procuraram resolver os problemas de assoreamento nas margens e leito e a presença de resíduos plásticos. Além da mobilização de sedimentos no leito, foi feita estacaria de vegetação ripícola nativa (salgueiros, entre outras espécies), assim como o desenvolvimento e instalação de um retentor de resíduos plásticos.

– Ribeiro do Povo, na bacia do Tejo (proximidades de Castelo Branco)

Este ribeiro tinha nas margens um silvado muito denso, que estava a impedir a regeneração natural da vegetação ripícola. Para minimizar este silvado, recorreu-se à utilização de um rebanho de cabras, que se demonstrou muito eficiente. Também se procedeu ao corte do canavial existente e foram efetuadas podas de crescimento, condução, contenção e abafamento da vegetação ripícola. Com os sobrantes desta atividade, foram implementados estabilizadores vegetais nos taludes das margens, assim como estruturas para refúgio da fauna piscícola.

Restauro fluvial da Ribeira do Povo: rebanho ajudou a remover as silvas existentes nas margens
Restauro fluvial da Ribeira do Povo
Restauro fluvial da Ribeira do Povo

Intervenções de restauro fluvial na Ribeira do Povo: minimização do silvado através de um rebanho de cabras, podas e utilização dos sobrantes para estabelecimento das margens e criação de habitats de refúgio para a ictiofauna (conjunto das espécies de peixes que vivem nesta região). © João Oliveira.

– Ribeira da Cardeira, na bacia do Guadiana (entre Serpa e Beja)

Na Ribeira da Cardeira existia um extenso e denso canavial que impedia o desenvolvimento e o equilíbrio da restante vegetação. Este canavial foi alvo de remoção para permitir a renaturalização das margens da ribeira. Em paralelo, foram criadas zonas de filtração para reter a poluição difusa que acaba por afluir para as águas da ribeira em resultado das atividades agrícolas na região.

restauro fluvial na Ribeira da Cardeira
Restauro fluvial na Ribeira da Cardeira

Intervenções de restauro fluvial na Ribeira da Cardeira, ilustrando diversos métodos de controle de canavial. Na primeira imagem, corte mecânico e retirada de rizomas; na segunda, aplicação de tela impermeável (mais tarde retirada), para conter a propagação e expansão da cana, reduzindo a sua competição com as espécies nativas.

© Noemi Parada Santiago, EDIA.

Refira-se que o projeto AQUADAPT foi distinguido pelo Programa Promove (Fundação La Caixa e Fundação para a Ciência e Tecnologia), em 2020. O consórcio que o implementou foi liderado pelo Centro de Estudos Florestais, do Instituto Superior de Agronomia, da Universidade de Lisboa (CEF-ISA) e composto pelo Instituto Superior Técnico, da Universidade de Lisboa (IST), a Agência Portuguesa do Ambiente, I.P. (APA) e a Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas de Alqueva S.A (EDIA). Os trabalhos decorreram em várias zonas transfronteiriças e envolveram abordagens multidisciplinares, incluindo modelação hidrológica e reavaliação das condições ecológicas, avaliação de risco, implementação de sistemas de monitorização e de medidas de restauro fluvial.

Os resultados do projeto AQUADAPT refletiram-se na melhoria da qualidade ambiental da Ribeira de Ximassas, Ribeiro do Povo e Ribeira da Cardeira, assim como no desenvolvimento de técnicas e metodologias replicáveis a outros ribeiros de regiões vulneráveis às alterações climáticas, nomeadamente a eventos climáticos extremos, como secas e cheias. Entre as suas inovações refira-se o desenvolvimento de um protótipo para um dispositivo de retenção de detritos flutuantes, como os plásticos. Trata-se de um dispositivo 100% orgânico e adaptado a ribeiras de pequena e média dimensão.

O exemplo das intervenções da WWF Portugal

Vários outros projetos de restauro fluvial têm melhorado a condição ecológica de cursos de água portugueses. A WWF Portugal é uma das organizações não governamentais ambientais (ONGA) envolvida nesta recuperação, sendo de referir o trabalho que desenvolveu na Ribeira de Odeleite.

– Remoção de barreira fluvial num troço da Ribeira de Odeleite, na bacia do Guadiana

A intervenção permitiu a remoção de um açude, o açude de Galaxes, que existia na ribeira de Odeleite, mas que já não tinha qualquer função e estava a bloquear o natural curso das águas desta ribeira.

A remoção, feita em 2023, permitiu restabelecer perto de oito quilómetros de extensão da ribeira à sua condição natural, melhorando as condições de habitat para várias espécies, entre as quais o saramugo (Anaecypris hispanica), um dos peixes de água doce mais ameaçados em Portugal, que passou a ser mais observado neste troço do Guadiana.

Açude de Galaxes antes do restauro fluvial neste troço da Ribeira de Odeleite
Restauro fluvial num troço da Ribeira de Odeleite removeu açude de Galaxes

Antes (na primeira imagem) e depois (na segunda imagem) da remoção do açude de Galaxes. © Fábio Pinto, WWF Portugal

Em 2024, a WWF Portugal procedeu a outra remoção, a do açude de Perofilho na ribeira com o mesmo nome, em Santarém. Estas ações estão a ser desenvolvidas com o apoio do Open Rivers Programme, que atribui apoio financeiro a iniciativas que restaurem o livre curso de rios e a sua biodiversidade.

Como avaliar as ações de restauro fluvial?

Considerando os objetivos a que se propõem, o sucesso das ações de restauro pode ser avaliado através da medição de indicadores biológicos, ecológicos e geomorfológicos isolados ou recorrendo a uma abordagem holística, que combina indicadores capazes de avaliar as comunidades e os diversos estágios do ciclo de vida da sua biodiversidade, assim como as características do habitat, como a qualidade da água ou a morfologia do rio.

A aplicação de índices baseados na composição das comunidades de macroinvertebrados (moluscos, larvas de insetos, entre outros), ictiofauna (conjunto das espécies de peixes de uma dada região) e vegetação é, por isso, muito utilizada para avaliar a resposta às ações de restauro.

A quantificação das funções do ecossistema fluvial, como a respiração ou a fotossíntese, pode também ser utilizada para medir o sucesso do restauro. O mesmo acontece com a quantificação das mudanças hidrogeomorfológicas, através da medição da largura do leito do rio e da sua profundidade, pela quantificação dos tipos de habitat (zonas de remanso ou de águas calmas e zonas de corrente, áreas de deposição natural de sedimentos nas margens ou no leito, diversidade de abrigos para a fauna), o tipo de substrato (fino, como a areia e areão, ou grosseiro, como as pedras e rochas) e o seu transporte (criação de zonas de erosão ou sedimentação).

Ações de restauro fluvial implementadas na Ribeira de Ximassas

Visita às ações de restauro implementadas na Ribeira de Ximassas durante o curso de formação sobre técnicas de restauro do projeto AQUADAPT.

© Ana Filipa Filipe

Um ecossistema fluvial que se considere restaurado apresentará:

–  Características hidrogeomorfológicas melhoradas: escoamento próximo do natural, maior diversidade de habitats;

– Melhorias ecológicas, biológicas e dos processos biogeoquímicos: aumento da biodiversidade, ciclos de nutrientes e atividades microbiológicas mais eficientes;

– Aprovisionamento otimizado de serviços de ecossistema: aumento da qualidade de água, melhoria no transporte de sedimentos ou mesmo criação de oportunidades recreativas;

– Maior envolvimento ativo das comunidades humanas locais com os seus rios, incluindo a sua participação nas atividades de gestão adaptativa.

Espera-se que um ecossistema fluvial restaurado apresente uma melhoria das suas características funcionais e estruturais. O tempo para que estas mudanças sejam observáveis e mensuráveis depende das características do ecossistema fluvial, do tipo de ação de restauro ou da sua escala espacial, estimando que à escala da bacia hidrográfica a resposta seja mais lenta do que num troço de uma ribeira. Podem observar-se alterações a curto prazo (até 2 anos), a médio prazo (2-5 anos), ou a longo prazo (5-10 anos). Nas alterações a curto e médio prazo, incluem-se, respetivamente, as melhorias na qualidade da água e as alterações na morfologia do rio, e nas alterações a longo prazo, a estabilização das populações e comunidades piscícolas (biomassa, densidade e diversidade), o equilíbrio dinâmico das características morfológicas e o transporte de sedimentos.