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Curiosidades

Do papiro à eletrónica em papel

Desde as primeiras plantas transformadas em folhas rudimentares para a escrita até à eletrónica em papel decorreram mais de cinco milénios. Descubra a história do papel e o modo como os materiais naturais de que é feito continuam a trazer inovação, em áreas que vão da eletrónica à higiene e saúde.

O papiro, uma planta aquática que cresce naturalmente em solos húmidos e inundados, desde o Egipto a Madagáscar e ao Zimbabué, foi uma das primeiras matérias-primas usadas naquele que foi, por muitos séculos, o antecessor do papel.

Foi com a Cyperus papyrus que se fizeram os primeiros papiros conhecidos. O processo consistia em cortar finas tiras do interior dos caules ainda verdes das plantas, alinhá-las lado a lado, sobrepor uma segunda camada perpendicularmente, pressionar e deixar secar para obter uma “folha”. A inovação aconteceu no Egito, por volta de 3000 a.C.

Já antes, na Ásia, as folhas de palmeira tinham servido de suporte para registar a escrita. O mesmo aconteceu com outras plantas, como o bambu (subfamília Bambusoideae) ou o linho (Linun usitatissimum), e também com a entrecasca removida de troncos de árvores, entrançados ou pressionados até formar superfícies mais lisas e finas, que serviram a escrita e outras artes, como os têxteis e a pintura, um pouco por todo o mundo.

Com o passar do tempo, os fabricantes aprimoraram a arte do papel: mergulharam as fibras das plantas em água, em cubas de madeira ou fossas revestidas de pedra, onde ficavam a amolecer alguns meses. Eram depois “batidas” pela força humana, com a ajuda de pilões de madeira ou pedra. A massa irregular e molhada resultante das etapas anteriores era disposta sobre um molde – uma moldura ligada por uma tela rudimentar –, e este tosco tabuleiro, que permitia escoar a água e reter a polpa, era colocado ao sol até o papel estar bem seco e pronto para remover.

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As técnicas foram-se aperfeiçoando e correram mundo a partir da Ásia Central. Chegaram à Península Ibérica pela mão dos árabes, após a conquista do Sul de Espanha e Portugal. Nos séculos XI e XII, Espanha tinha já a funcionar as primeiras oficinas de papel europeias, mas foi Itália que, nos séculos seguintes, tomou a dianteira da produção e inovação.

Em Portugal, o mais antigo pedaço de papel conhecido data de 1268 e foi encontrado no Alentejo. Nesta mesma época, no Reinado de D. Dinis (1279-1325), já havia documentação onde se distinguia o papel do pergaminho (feito de pele de ovelha e cabra), então amplamente usado. A produção portuguesa terá começado mais tarde, já no século XV, com os primeiros moinhos de papel instalados junto ao Rio Lis, em Leiria, onde um dos antigos moinhos constitui hoje registo museológico.

No início do século XVIII, o cientista René Antoine Ferchault de Réamur observou, na natureza, um conjunto de vespas a fazer o seu ninho e viu que o faziam de madeira que partiam em pequenas partículas e depois uniam com a ‘saliva’ que segregavam, criando um entrançado de aspeto semelhante ao papel. Terá escrito, inclusive, que “as vespas produziam papel de qualidade, de aparência semelhante ao nosso” e pareciam estar “a ensinar-nos” ou desafiar-nos a ver “se conseguimos ou não fazer papel de qualidade através do uso de certas madeiras”. Nunca chegou a testar a ideia, que só viria a ser retomada mais tarde.

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A redescoberta do papel: a madeira como matéria-prima

Embora o papel se tornasse mais comum por toda a Europa, ele continuava a ser feito a partir de plantas, restos de panos – como algodão, linho ou cânhamo – e, por vezes, do interior da casca (do floema) de árvores como é o caso da figueira mudakh (Ficus populifolia).

Foi só no início do século XIX que o processo industrial de produção de pasta a partir da madeira veio mudar o rumo da história do papel. Contudo, o processo de mecanização tinha sido iniciado no século anterior, em França, por Nicholas-Louis Robert, inventor da primeira máquina de papel conhecida, com um tabuleiro móvel e dois rolos compressores. Várias outras se seguiram.

Pensa-se que a pasta de madeira para fazer papel tenha sido utilizada pela primeira vez pelo alemão Jacob Schaäffer em 1765-71. Uma obra em seis volumes regista as suas experiências com materiais para fazer papel e pensa-se que é dele a primeira amostra documentada de papel feito com pasta de madeira. Em 1801, o inglês Matthias Koops, publica a sua obra em papel reciclado e um apêndice em papel de fibra de madeira.

Contudo, o feito acabou por ficar associado a dois outros nomes: ao do alemão Friedrich Gottlob Keller e ao do canadiano Charles Fenerty, que chegaram individualmente a processos semelhantes de produção de pasta para papel, em 1844. Keller vendeu o seu processo, que foi patenteado e posto em prática em 1852 por Heinrich Volter, fundador da fábrica H. Voelter & Sons (na Alemanha) e primeiro grande produtor e importador de pasta para papel para a Europa e os Estados Unidos da América. O fabrico, por meios mecânicos, era feito com uma rapidez nunca vista, mas a qualidade do papel ainda podia melhorar.

Perto de duas décadas depois, a invenção da pasta química de madeira promoveu esta desejada melhoria, já que permitiu separar a celulose da lenhina (dois componentes da madeira) e usar apenas as fibras de celulose: a partir delas é possível obter um papel mais forte (na produção mecânica, a lenhina presente fazia com as fibras de celulose se mantivessem separadas, o que enfraquecia a estrutura do papel).

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O processo kraft, um dos mais usados para a produção de pasta química de celulose, foi inventado em 1870, por Carl Dahl, e permitiu produzir papéis especialmente fortes. Foi, aliás, com este processo que Portugal viria a destacar-se na moderna indústria da pasta e papel: foi o primeiro país a produzir de forma industrial pastas químicas de eucalipto (em 1923), tendo iniciado em 1957 a produção pelo processo kraft, na Companhia Portuguesa de Celulose, em Cacia.

Novos papéis do papel

A descoberta de que a celulose pode ser transformada em derivados de dimensões nanométricas, a nanocelulose (com partículas milhares de vezes mais finas que um fio de cabelo humano), formando agregados que se encadeiam de variadas formas para ganhar diferentes propriedades químicas e mecânicas, tem vindo a permitir criar papéis com diversas características, mas também aplicações inéditas em muitas outras áreas. Vejamos três exemplos destes novos papéis do papel:

Aprofunde o potencial da celulose e a valorização dos seus derivados em “Celulose: um super biomaterial no interior das plantas e madeira”

Eletrónica em papel
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Em 2008, uma equipa de cientistas portugueses da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa trouxe ao mundo a eletrónica em papel, com o Paper-e®. Neste conceito de “papel eletrónico”, o papel funciona como suporte e isolante e a tinta nele impressa não é apenas cor, mas um semicondutor capaz de transmitir e processar informação.

O conceito veio abrir portas para múltiplas linhas de investigação por todo o mundo, desde dispositivos de papel para monitorização de indicadores de saúde, a papéis interativos e etiquetas eletrónicas, passando por baterias em papel para carregar dispositivos como telemóveis ou tablets.

O objetivo não é concorrer com os chips que integram os computadores, capazes de fazer milhões de operações por segundo, mas criar componentes eletrónicos leves, de material renovável, menos poluentes e de baixo preço (ao contrário do silicone habitualmente usado), que possam ser amplamente usados em diversas indústrias.

Graças a outra inovação portuguesa, feita na Universidade de Aveiro em 2015, é também possível a qualquer pessoa criar estes circuitos em casa, imprimindo-os em papel, numa impressora a jacto de tinta. A inovação está, neste caso, nos tinteiros e na tinta que contem nanopartículas.

Papeis funcionais
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Já no mercado estão também vários papéis funcionais, ou seja, com propriedades que não são habituais – neste caso, nos papéis de cozinha. Algumas das inovações têm também assinatura portuguesa.

É este o caso de um papel utilitário, para limpeza doméstica já com sabão integrado: o aspeto do Amoos Aquactive é o de um rolo de papel de cozinha como tantos outros, mas o agente ativo de limpeza nele incorporado é ativado em contacto com a água. Para limpar, basta humedecer e passar na superfície.

Outro exemplo, da mesma marca, é o Calorie Control, um papel pensado para secar os fritos que fazemos em casa, reduzindo a quantidade de gordura que transportam e que chega ao nosso organismo. Controlando a estrutura porosa da fibra deste papel, conseguiram manter-se bolsas de ar que, em contacto com os alimentos, absorvem cerca de um quarto mais de gordura do que um papel de cozinha sem esta funcionalidade.

A ideia por detrás desta inovação passou pela criação de um benefício para a saúde, um dos sectores onde os papéis e cartões com ativos incorporados se mostram mais promissores. Por exemplo, papéis com ativos antibacterianos incorporados podem ter funções importantes, designadamente em contexto hospitalar.

Comprimidos em papel
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É insólito, mas em breve pode ser real. Uma equipa de investidores alemães encontrou no papel uma solução inovadora para levar de forma mais eficiente os ingredientes ativos dos medicamentos orais até ao local do corpo onde precisam de atuar. Os minúsculos poros (nanoporos) presentes nas fibras do papel permitem manter intacta a estrutura das moléculas, possibilitando que os ativos se dissolvam no organismo com maior rapidez.

A investigação tem sido liderada por uma equipa do Departamento de Farmácia, da Universidade de Marburgo (Philipps-Universität Marburg), Alemanha, que se dedica à pesquisa de soluções nanométricas para o transporte e a entrega das substâncias ativas ao organismo (medicamentos e cosméticos), porque não basta ter um bom medicamento se ele não chegar ao seu alvo com eficácia.

Neste caso, as moléculas são integradas numa matriz de celulose (a mesma base do papel), que pode ser prensada e moldada sob a forma de granulados e drageias.

A inovação pode tornar-se particularmente relevante no caso de fármacos pouco solúveis, os quais podem ter nesta matriz de papel um veículo mais eficiente para a administração oral. A viabilidade do seu fabrico em larga escala foi já comprovada.