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Pasta e Papel

70 anos de indústria de pasta e papel em Portugal

Em julho de 1953, a Companhia Portuguesa de Celulose, em Cacia, iniciava os ensaios de produção. Este foi o primeiro passo num caminho inovador que constituiu o ponto de viragem de um sector até então incipiente e que ajudou a estabelecer Portugal como uma referência internacional na indústria da pasta e papel.

O papel faz parte da sociedade há séculos, mas foi no início do século XVIII que começaram a desenvolver-se os primeiros processos de produção mecanizados e a indústria de pasta e papel como hoje a conhecemos – baseada na transformação química da celulose presente na madeira – desenvolveu-se a partir de meados do século seguinte, numa altura em que aumentava a procura de papel em grande parte do mundo.

Em 1936, cada português consumia, em média, 5 quilogramas de papel por ano, um valor modesto face aos 64,5 quilos que se consumiam nos EUA e muito distante dos cerca de 95 quilogramas de consumo per capita de papel e cartão verificados em Portugal 2021. Apesar da reduzida procura nacional nas primeiras décadas do século XX, a indústria de pasta e papel em Portugal era incipiente e sua a produção era manifestamente insuficiente para as necessidades do mercado interno.

Embora as inovações tecnológicas tivessem permitido passar dos tradicionais moinhos manuais às fábricas de pasta e às unidades de produção integrada de pasta e papel – uma realidade aproveitada pelos países escandinavos, Estados Unidos e Canadá desde meados do século XIX –, Portugal pouco tinha feito neste caminho da industrialização e foi só em meados do século XX que o atraso começou a ser recuperado.

A produção de pasta de celulose era uma condição base para o desenvolvimento da indústria papeleira nacional e a madeira constituía a matéria-prima fundamental. A diminuta área florestal (e a consequente falta de madeira) era até então uma condicionante, mas esta realidade começou a alterar-se, de 1938 em diante, com a implementação dos planos de povoamento e fomento florestal do Estado Novo que promoveram a arborização de terrenos incultos e baldios.

Na década de 50, a área florestal aproximava-se já dos 30% do território de Portugal continental, totalizando cerca de 2763 milhões de hectares (atualmente, é estimada em 3223 milhões de hectares ou 36% do território, segundo o 6.º Inventário Florestal Nacional – IFN6). Predominavam então as florestas de espécies resinosas (1309 milhões de hectares), nomeadamente os pinhais, e foi, por isso, com madeira de pinho (Pinus pinaster) que a indústria da pasta e papel deu os seus passos iniciais em Portugal.

A evolução da floresta portuguesa na primeira metade do século XX

(mil hectares)
1902
1928
1956
Pinhais e outra resinosas
1020
1199
1309
Montados de sobro e azinho
783
940
1264
Carvalhais e soutos
154
193
132
Eucaliptais
-
8
58

Fonte: Inventário Florestal Nacional (1789 – 2006) – Evolução do IFN em Portugal

1953: o arranque da produção de pasta e papel em Cacia

Embora já existissem inúmeras unidades fabris a produzir papel nos anos 30 e 40, apenas uma, de origem inglesa, produzia e comercializava pasta, que seguia maioritariamente para exportação. Daí que a fundação de uma indústria nacional capaz de suprir as necessidades de pasta de celulose em Portugal (e também de diferentes papéis, incluindo papel de jornal e de impressão), reduzindo as importações, tenha sido considerada um desígnio nacional.

A fundação da Companhia Nacional de Celulose aconteceu em 1941, mas a então criada empresa demorou a sair do papel. O “impulso decisivo só ocorreu a partir de 1949, após Portugal ter apresentado finalmente uma série de projetos ao apoio financeiro do Plano Marshal”, lembra Jorge Fernandes Alves, no artigo “A estruturação de um sector industrial – a pasta de papel”, publicado na revista “História”, da Faculdade de Letras, referindo-se ao plano de apoio que os EUA concederam às economias do ocidente e sul da Europa para recuperação após a II Grande Guerra (apoio inicialmente rejeitado por Oliveira Salazar).

Com a abertura de capital à participação dos privados e com a concessão de quase 125 mil contos (cerca de 625 mil euros) do Plano Marshal destinados à aquisição de máquinas e outros equipamentos, a Companhia Portuguesa de Celulose começou a ser construída em 1950 e equipada em 1952.

“Acabou por se escolher como localização Cacia, freguesia de Aveiro, numa zona rodeada de uma mancha florestal ampla e densa, perto do porto de mar de Aveiro (11 km), na margem do rio Vouga, e próximo da linha de comboio do Norte e da estrada nacional…”, refere o historiador Jorge Fernandes Alves. Esta localização tornou esta enorme instalação fabril conhecida como a fábrica da Cacia.

Os ensaios de laboração começaram em julho de 1953 (há exatamente 70 anos), com um período experimental dedicado ao fabrico de pasta crua, e com as condições para a produção de pasta branqueada e papel “prestes a concluírem-se”, lê-se na comunicação aos acionistas relativa a este ano.

No ano seguinte, a fábrica de Cacia teve uma produção “de cerca de 30.300 toneladas de pasta crua, das quais 1.240 receberam branqueio e 4.350 foram convertidas em papel. O valor total das vendas efetuadas foi de 88.400 contos, correspondentes a 22.800 toneladas de pasta (5.400 vendidas ao país e 17.400 toneladas ao estrangeiro), e a 2.700 toneladas de papel (23 toneladas apenas vendidas no país e o restante ao estrangeiro)”, revela a comunicação feita em Assembleia-Geral.

A pouca pasta branqueada produzida seguiu toda para o mercado interno e continuou a ficar muito aquém da procura, pois a Companhia Portuguesa de Celulose debateu-se ainda com problemas técnicos que só conseguiu resolver no final desse ano.

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Durante 1954, a fábrica preparou também a compra e instalação de equipamentos para ampliar capacidade e diversificar a produção (ao cartão canelado e sacos), assim como para melhorar o branqueamento da pasta, e concluiu os estudos para a implementação de um sistema de tratamento das águas fabris.

Numa enorme fábrica de pasta e papel, que tinha por missão fabricar de tudo um pouco, os anos iniciais foram maioritariamente experimentais, com os técnicos portugueses apoiados por especialistas estrangeiros. A maioria dos equipamentos tinham vindo dos Estados Unidos (concedidos como parte do financiamento do Plano Marshal) e estavam desenhados para outras madeiras – os pinhos americanos – e não para o pinho português que é “muito mais rico em lenhina e difícil de branquear”, explica um artigo da revista Tecnicelpa.

Do pinho ao eucalipto: a consolidação da indústria da pasta e papel

A madeira de pinho portuguesa “não se apresentava ao nível de competição da espécie silvestres e dos Abies da Europa do Norte”, e nem sempre permitia que se atingissem os objetivos de qualidade previamente traçados, incluindo de resistência e cor, assim como os de rentabilidade.

Em 1956, a equipa de Cacia decidiu, assim, avaliar se o eucalipto, já usado na Austrália na produção de pasta e também pela única fábrica de pasta que existia em Portugal antes da Companhia Portuguesa de Celulose, (a Companhia de Celulose do Caima) poderia ser uma alternativa ao pinho.

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“Ninguém ajudara Cacia!”, escreveu o Engenheiro Químico Luís Bernardo Rolo, sobre a mudança para o eucalipto: “Até mesmo os consultores ingleses eram de parecer contrário. Seria utópico, no seu dizer, utilizar tal fibra para a oferecer a mercados exigentes!”. E acrescenta “A experiência vinga. Como consequência do trabalho pioneiro, pôde assistir-se a um desenvolvimento espectacular da indústria de celulose em Portugal…”

“Em 1957, após uma aturada investigação feita em Cacia por exclusiva iniciativa dos seus técnicos, investigação esta conduzida não só quanto ao fabrico de pastas cruas e branqueadas, como quanto à sua inclusão nos papéis kraft e de impressão em geral, começaram a vender-se na Europa as pastas cruas e branqueadas de eucalipto. Os primeiros estudos foram conduzidos à escala laboratorial. Transpostos para a escala industrial, processando a nova matéria-prima fibrosa no equipamento que fora estudado e instalado para o pinho bravo, os resultados foram confirmados em toda a linha”, recorda-se num documento comemorativo dos 25 anos da fábrica de Cacia.

“A introdução das pastas de eucalipto nos mercados europeus, anos depois estendidas a outros continentes, deveu-se aos técnicos de Cacia. A utilização destas pastas, hoje generalizadíssima, revolucionou a técnica papeleira e destronou pastas então convencionalmente julgadas insubstituíveis em determinados tipos de papéis…”, salientou o engenheiro Luís Bernardo Rolo, que participou no arranque da atividade de Cacia e foi um dos percursores do ensaio industrial com eucalipto e de várias outras implementações e ampliações desta fábrica.

Ainda na década de 50, a Companhia Portuguesa de Celulose cumpria a missão para que fora designada, tornando-se no elemento central e agregador do “nascente” sector da pasta e papel, assim como num centro técnico de referência – chamaram-lhe a universidade da celulose – que partilhou conhecimento e apoiou o arranque de associadas e concorrentes.

A Companhia Portuguesa de Celulose foi “uma empresa mítica a vários níveis no sector da celulose em Portugal, pelo papel que desempenhou no arranque decisivo do sector”, refere o historiador Jorge Fernandes Alves, na revista “História”.

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À direita na imagem, o engenheiro Luís Bernardo Rolo, em Cacia (1973). © Tecnicelpa

No início dos anos 1970, após ampliação da capacidade para produção de 150 mil toneladas de pasta por ano, a fábrica de Cacia era responsável por mais de metade das receitas portuguesas da indústria de pasta e papel, com um importante papel no abastecimento do mercado interno e um ainda maior contributo para as exportações.

Com o 25 de abril de 1974, vieram as nacionalizações e as celuloses portuguesas (inteiramente portuguesas ou onde existiam participações nacionais) mudaram de mãos: deram lugar à empresa pública Portucel e, mais tarde, também à Soporcel. Quase 20 anos depois, um movimento inverso devolveu-as aos privados e já no início do século XXI (2001), as duas “gigantes” portuguesas do sector fundem-se no Grupo Portucel Soporcel, hoje The Navigator Company, que se mantém como uma referência na gestão florestal e na produção de pasta e papel.

Há 70 anos, a fábrica de Cacia foi, assim, a grande catalisadora deste sector que, em 2021 e de acordo com o INE – Instituto Nacional de Estatística, contava com perto de 570 empresas em Portugal, responsáveis por mais de 13 mil postos de trabalho, que dinamizaram a economia nacional com um volume de negócios de mais de 4,8 mil milhões de euros e exportações superiores a 2,7 mil milhões de euros.