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Produtos Silvestres

Bolota: o novo despertar de um alimento milenar

A bolota tem sido amplamente usada para alimentar o gado, em especial os porcos que crescem no montado, mas nem sempre foi assim. Alimento importante em tempos antigos, a bolota tem potencial para voltar à mesa dos portugueses. Descubra porquê neste artigo, em colaboração com Inês Bento e Joana Amaral Paulo.

Comer bolota? Mas ela não serve só para alimentar os porcos? Embora este seja um preconceito habitual nos dias de hoje, a bolota foi um alimento comum à mesa dos portugueses e assim se manteve até aos anos 70 (do século XX), em particular nas regiões onde este fruto é mais abundante e nas quais desempenhou um papel importante na subsistência das populações em períodos de maior carência, como, por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial.

No território que é hoje Portugal, a bolota terá sido usada na alimentação humana desde a Idade do Bronze (de fins do III milénio a meados do I milénio antes de Cristo), e já então seria torrada para consumo humano, segundo indicam inúmeros vestígios encontrados em jazidas arqueológicas.

Antes da introdução dos cereais (vindos do Levante) na dieta mediterrânica, esta era uma das matérias-primas de eleição para fazer farinha e pão, e o seu consumo na Península Ibérica já seria feito sob várias outras formas. Segundo revela Plínio, na sua História Natural, escrita no século I dC: “… hoje em dia, nas províncias hispânicas as bolotas são usadas como sobremesa. As bolotas têm um sabor mais doce quando tostadas em cinzas.”

Já então se saberia que, antes de serem ingeridas, as bolotas precisam de perder o seu sabor tipicamente amargo (que se deve à presença de taninos), através de uma prolongada imersão em água em fria, da cozedura ou por mistura com as cinzas dos braseiros onde são assadas ou torradas.

Trazer a bolota para a alimentação: mais sustentabilidade, menos desperdício

Apesar de terem perdido preponderância na alimentação humana, a favor da alimentação animal, estes frutos que amadurecem no outono continuaram, em grande parte do século XX, a fazer parte da tradição culinária nas zonas onde são abundantes, como acontece no montado alentejano.

Seria, assim, por exemplo, em Montemor-o-Novo, onde continuaram a ser consumidas cruas, com mel, assadas ou cozidas (depois de retalhadas, como se faz às castanhas) e em muitas outras receitas que se foram caindo em desuso – desde bolota cozida com couve, a pasteis de bolota (tipo de pasteis de grão) e marmelada de bolota.

No século XXI, com o intuito de reduzir o desperdício, valorizar os recursos endógenos (recursos que temos em Portugal) e encontrar fontes alimentares sustentáveis, têm-se procurado no passado soluções capazes de dar resposta às necessidades atuais e a bolota é um desses casos.

Pensa-se que há quantidades expressivas de bolota que são desperdiçadas anualmente (mais de metade da produção, avançou uma projeção em 2015), pelo que voltar a utilizá-la na alimentação humana contribui para a aproveitar e é também um investimento no desenvolvimento económico local e na sustentabilidade do sistema produtivo.

Um alimento biológico, de elevado valor nutricional e isento de glúten

Acresce que a bolota tem elevado valor nutricional, é um fruto livre de resíduos químicos e não contem glúten, o que faz dela um alimento saudável e uma alternativa na alimentação dos celíacos.

Na composição deste fruto salienta-se a presença de amido (mais de 50% do seu miolo) e outros hidratos de carbono, de fibras, de proteínas e de vitaminas (principalmente A e E).

Este elevado teor em amido permite ainda que a bolota possa ser aplicada em várias áreas da indústria. Transformada em espessante e estabilizante, pode ser usada na indústria alimentar – para melhorar a textura das massas, por exemplo – assim como na farmacêutica e cosmética, podendo ser também incorporada na produção de têxteis, papéis e bioplásticos.

Tanto a bolota como a sua casca e a cúpula (os dois coprodutos mais abundantes na transformação da bolota) têm ainda potencial para a extração de compostos fenólicos de caráter antioxidante, propriedade que inibe a oxidação celular (responsável pela produção de radicais livres), ajudando a fortalecer o sistema imunitário.

E, claro, a bolota pode continuar a ser integrada na alimentação humana das mais variadas formas: assada, moída em farinha para padaria e pastelaria, integrada em receitas variadas e até como óleo alimentar. Isto porque o teor em gordura e o perfil de ácidos gordos, apesar de serem muito variáveis consoante as variedades de bolota, perspetivam a extração de um óleo vegetal, com características semelhantes ao azeite, que pode ser obtido de forma complementar à produção de farinhas.

Velhos e novos sabores com bolota

Embora a bolota continue a não ser um alimento ou ingrediente comum nos supermercados portugueses, têm-se ampliado as opções culinárias que a integram. Muitas delas começaram a ser desenvolvidas na Herdade do Freixo do Meio, que comercializa desde café de bolota, a pão e a broa de bolota, passando por hambúrgueres e enchidos, variedades que servem também opções alimentares vegetarianas e veganas.

A farinha de bolota é um dos produtos mais comuns, a par do licor, mas há até quem já tenha testado a viabilidade de soluções menos óbvias, como o açúcar de bolota ou o iogurte de bolota – este último acabou por não passar à fase seguinte, por haver, na altura, falta de matéria-prima disponível. Esta disponibilidade precisa de aumentar e este tem sido um dos objetivos da plataforma Landratech, que está já a transformar bolota em Portugal, aproximando produtores e compradores, e promovendo a cadeia de valor deste fruto e de vários dos seus derivados.

Para destacar e aprofundar o potencial da bolota na alimentação humana foi inclusive criada, em 2020, a Confraria Ibérica da Bolota, e para promover novas formas de a saborear tem sido realizada a Semana da Bolota, que decorre habitualmente em março, em Montemor-o-Novo, com várias padarias, pastelarias e restaurantes a integrá-la nos seus menus.

A farinha de bolota foi, também, um dos ingredientes-chave do “Mil-folhas de batata, cantarelos e bolota” que venceu o concurso “Maravilhas da Nova Gastronomia”, na Categoria Vegana, em 2021.

Vários anos antes, em 2013, o chef Pedro Mendes já tinha também ajudado a este despertar, com o livro “O Renascer da Bolota”, dedicado ao consumo humano e às receitas que voltam a trazê-la à mesa dos portugueses. Para poder levá-la à sua mesa, entre as dezenas de sugestões patentes no livro de Pedro Mendes, resgatamos uma: Moelas estufadas com tomate e bolotas. E para sobremesa, damos a conhecer a receita de Cupcakes de bolota, criada pela Terrius, uma das empresas artesanais em Portugal dedicada à produção de farinha de bolota.

Moelas estufadas com tomate e bolotas, do chef Pedro Mendes

Comece por fazer um clássico refogado com azeite, cebola e alho picados e louro. Depois frite as moelas no refogado, previamente temperadas com sal e pimenta. Junte duas colheres de sopa de tomate pelado e um copo de vinho branco. Deixe apurar durante cerca de 20 minutos em lume brando.

Noutro recipiente, salteie as bolotas temperadas de sal marinho até ficarem douradas. Na altura de servir junte as moelas.

Cupcakes de bolota da Terrius

Vai necessitar de 100 gr. de farinha de bolota e de 70 gr. de farinha convencional para bolos, assim como de 70 gr. de açúcar, 4 ovos, um iogurte natural e uma colher de sopa de óleo vegetal. Comece por bater os ovos, juntar a farinha de bolota e mexer muito bem. Junte o açúcar e mexa até dissolver, adicionando depois a farinha para bolos e o iogurte. Mexa até obter uma mistura homogénea, junte o óleo e volte a mexer. Enfeite com pepitas de chocolate negro, leve ao forno pré-aquecido a 180 graus e deixe cozinhar cerca de 20 minutos.

Três perguntas sobre a bolota:

1. Quais são as árvores que dão bolotas?

A bolota é o fruto (e semente) dos carvalhos – Género Quercus. Assim, as árvores que dão bolota são as que fazem parte deste Género, que tem reconhecidas 11 espécies nativas em Portugal, assim como várias exóticas e muitos híbridos (que nascem do cruzamento entre diferentes espécies de carvalhos). No nosso país, as mais reconhecidas “árvores da bolota” são os sobreiros (Quercus suber) e as azinheiras (Quercus rotundifolia), por serem as mais frequentes: juntas, estas duas espécies representam um terço da nossa floresta (mais de 1 milhão de hectares). As bolotas destas duas espécies são, por isso, as mais abundantes e estudadas.

As restantes espécies de carvalhos ocupam uma área bastante menor – cerca de 3% (82 mil hectares) – e esta é a razão por que temos menor quantidade de bolotas destas espécies, onde se incluem, entre outros, o carvalho-negral (Quercus pyrenaica), o carvalho-cerquinho ou português (Quercus faginea) e o ainda mais raro carvalho-de-Monchique (Quercus canariensis).

2. As bolotas são todas iguais?

As bolotas podem ser bastante diferentes, tanto no sabor como na aparência. Tal como noutros frutos, há diferenças reconhecidas entre as bolotas de diferentes espécies, mas também dentro de uma mesma espécie, porque árvores e frutos são influenciados pelas inúmeras condições do seu habitat, incluindo variações ambientais, como a exposição direta ao sol (ou a presença de sombra) e a abundância de água (ou falta dela), por exemplo.

Das duas bolotas mais comuns em Portugal, a da azinheira é reconhecida por ser mais doce, devido à reduzida quantidade de taninos que tem em comparação com a do sobreiro. Menos taninos conferem-lhe menor adstringência e prevalece a perceção de um sabor mais doce, mais apreciado na alimentação humana.

Apesar de existir este conhecimento base sobre a bolota, há ainda muito por desvendar para podermos caracterizar as bolotas provenientes das diferentes espécies e locais em Portugal. Várias equipas de investigadores procuram aprofundar estes conhecimentos, até porque deles depende, em grande parte, a possibilidade de sabermos as melhores formas de transformar a bolota e de beneficiarmos do seu valor natural.

O projeto AcornDew, por exemplo, está a estudar a bolota de carvalho-negral no Parque Natural de Montesinho, em Bragança, onde existe uma das mais extensas florestas europeias desta espécie. A equipa procura, entre outros objetivos, perceber o efeito das variáveis climáticas na produção desta semente (ao nível do povoamento e da árvore) e definir o perfil qualitativo desta bolota, com o intuito de estabelecer o seu valor nutricional e potencial funcional. E a equipa está ainda a dedicar-se ao desenvolvimento de pão, óleo e biscoitos com bolota de carvalho-negral.

Bolota de Quercus pyrenaica verde e madura. Fotos de Inês Brilha.

3. Onde podem encontrar-se produtos alimentares de bolota?

O projeto técnico científico Wildfood criou uma plataforma digital (em língua inglesa) onde é possível pesquisar por bolota (Acorn) e identificar algumas marcas e estabelecimentos de cariz local e artesanal com produtos alimentares que integram a bolota. Eis seis exemplos:

  • Cooperativa do Freixo do Meio disponibiliza perto de uma dezena de produtos alimentares de bolota, incluindo farinha, melada, paté, pão, broa, bolachas, hambúrguer e infusão (tipo café), que podem ser adquiridos online.
  • Doces Candeias produz doce de bolota, combinando pedaços deste fruto com coco e aroma a cacau;
  • Dom Alentejo, comercializa online produtos tradicionais alentejanos, incluindo bolachas de bolota e broas de bolota com mel de Estremoz.
  • Moinho de Pisões: vende farinha de bolota de azinheira, bombons de bolota com chocolate e vários tipos de pão, bolachas, tartes e queijadas com farinha de bolota.
  • Pastelaria Landroal, no Alandroal, criou vários doces com bolota, de que são exemplo o pastel de nata de bolota e o pão de rala de bolota.
  • Vale do Mestre produz licores de bolota.

Esta lista não é exaustiva e outras empresas e iniciativas têm promovido produtos e receitas de bolota em Portugal, a exemplo da Terrius.

Em colaboração

Joana Amaral Paulo

Professora no CEF – Centro de Estudos Florestais, do ISA – Instituto Superior de Agronomia, Joana Amaral Paulo integra o grupo de investigação “ForChange” e é coordenadora da comissão do curso de mestrado em Engenharia Florestal e dos Recursos Naturais no ISA. Entre os seus principais tópicos de investigação, está a compreensão e modelação dos efeitos do clima, solo e práticas de gestão em sistemas agroflorestais, com particular enfase no ecossistema do montado e na cortiça. É coordenadora do projeto AcornDew dedicado ao estudo da disponibilidade e utilização de bolota e da melada de carvalhos. Foi uma das fundadoras da Federação Europeia para a Agrofloresta (EURAF), onde se manteve como delegada nacional até 2022, e membro da IUFRO Task Force “Unlocking the Bioeconomy & NTFPs”.

Inês Brilha Bento

Inês Brilha Bento integrou a equipa do projeto AcornDew, no ISA – Instituto Superior de Agronomia, da Universidade de Lisboa, durante dois anos, como bolseira de investigação da Fundação para a Ciência e Tecnologia e neste período aprofundou os seus conhecimentos na área de Ecologia Florestal. Inês Bento é licenciada em Biologia – ramo de Biologia Ambiental, concluiu o Mestrado em Ecologia e Gestão Ambiental, ambos na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e fez uma Pós-Graduação em Gestão da Sustentabilidade no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa. Em final de 2023, realiza um estágio no Gabinete de Sustentabilidade na Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, no âmbito do programa CA Educa.