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Espécies Florestais

Camarinheira: um arbusto único das areias e dunas atlânticas ibéricas

A camarinheira é uma das espécies mais emblemáticas das dunas e pinhais litorais portugueses, famosa principalmente pelo seu fruto: uma baga branca comestível – a camarinha – que lembra uma pérola. Conheça este pequeno arbusto que, apesar de crescer apenas na Península Ibérica, é ainda desconhecido de muitos portugueses.

A camarinha ou camarinheira (Corema album) é um arbusto que nasce principalmente em habitats dunares e solos arenosos e que cresce naturalmente no litoral atlântico ibérico.

Adaptada ao vento, à salinidade e à secura destas paisagens próximas do mar, a espécie faz parte dos matagais que têm um papel ecológico importante na fixação e estabilização das dunas. Ainda assim, o que a torna mais reconhecida são as camarinhas – as suas pequenas e deliciosas “pérolas” que aparecem no verão.

Da família das Ericaceae – a mesma a que pertencem, por exemplo, o medronheiro (Arbutus unedo) e o arando ou mirtilo (Vaccinium myrtillus) – a camarinheira deve o seu nome científico Corema ao grego “korema” que designava um feixe ou conjunto de ramos – uma vassoura – e a sua densa e fina ramagem terá sido utilizada em tempos antigos com esta finalidade (tal como as ramagens de outros arbustos). O qualificativo album é mais percetível, aludindo à alvura ou brancura dos seus frutos.

Este é um arbusto ou subarbusto que cresce geralmente até aos 30 a 75 centímetros, embora possa elevar-se até cerca de um metro, e que forma pequenas moitas densas e arredondadas. Os seus caules, lisos e com uma casca castanha acinzentada, são muito ramificados. As folhas são estreitas, lembrando finos cilindros dispostos ao longo dos ramos, que sobressaem pelo seu verde-escuro brilhante. A parte superior da folha enrola-se sobre a inferior para a proteger e é revestida por uma cutícula serosa espessa, que evita a perda de água por transpiração, o que ajuda a planta a resistir à secura das areias durante o período quente.

A camarinheira tem plantas masculinas e femininas (espécie dioica). Os arbustos masculinos produzem inflorescências pequeninas, reunidas no limite dos ramos, com estames evidentes e anteras que lhe dão um “tufo de cor” laranja. As plantas femininas têm flores igualmente pequeninas – cerca de dois milímetros – que surgem isoladas ou aos pares. As suas três pétalas têm um tom rosado. São estas cores que sobressaem por entre o verde da folhagem durante a primavera – entre fevereiro e junho –, quando a camarinheira desenvolve a sua floração.

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Embora tenha sido descrita como pertencente à família Empetraceae, novos estudos baseados em características morfológicas e moleculares vieram demonstrar que a Corema difere do género Empetrum (ao qual pertencem as pequenas plantas arbustivas com bagas escuras, nativas do hemisfério norte) e do género Ceratiola (que contém apenas uma espécie, Ceratiola ericoides, conhecida como alecrim-da-Flórida ou alecrim-das-dunas, nativo dos Estados Unidos), tendo sido incluída na família Ericacea.

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A polinização é feita, sobretudo, pelo vento (polinização anemófila), embora os animais que comem os frutos – onde se incluem mamíferos e aves, como coelhos, raposas, gaivotas e melros – também ajudem a dispersar as suas sementes.

Depois de polinizadas, já com o verão a anunciar-se, as plantas femininas desenvolvem pequenos frutos arredondados, semelhantes a bagas, que passam de verdes a brancas ao amadurecer. Com cinco a oito milímetros de diâmetro e cerca de meia grama de peso, lembram pequenas pérolas perfumadas, de polpa suculenta. Durante a maturação, o seu branco torna-se levemente translúcido (deixando as sementes visíveis) e por vezes rosado.

O branco deve-se à presença de dois ácidos triterpénicos – ácidos ursólico e oleanólico – que, além darem uma tonalidade pouco comum ao fruto, têm propriedades benéficas identificadas, nomeadamente antioxidantes e anti-inflamatórias.

A camarinheira feminina frutifica em pleno verão e as suas pérolas comestíveis têm um sabor doce, embora levemente ácido – o que lhes traz uma agradável nota cítrica de frescura –, e libertam um aroma melado. No interior existem, normalmente, três sementes muito rígidas. Foi o nome destes frutos, as camarinhas, que acabou por designar as plantas, tornando-as mais conhecidas como camarinhas do que como camarinheiras.

Camarinheira é única do litoral atlântico português e espanhol

O género botânico Corema a que pertence a camarinheira tem apenas duas espécies conhecidas no mundo:

  • A Corema album, endémica da costa atlântica da Península Ibérica, que cresce principalmente em dunas de areia, parcialmente fixas, durante as etapas pioneiras e maduras de sucessão arbustiva, mas também em locais rochosos e falésias.
  • A Corema conradii, endémica da costa nordeste da América do Norte, que cresce no litoral atlântico do Canadá (regiões do Quebeque, Nova Brunswick e Nova Escócia) e dos EUA (Maine, Massachusetts e Nova Iorque). O aspeto do arbusto é semelhante, mas os seus frutos são diferentes: têm um tom arroxeado e uma textura seca, em vez de suculenta.

A camarinha ibérica tem uma subespécie única dos Açores, a Corema album subsp. azoricum, presente em mais de metade das ilhas – São Miguel, Graciosa, São Jorge, Pico e Faial – onde cresce sobre solos formados por lava e cinzas vulcânicas.

Quer isto dizer que a camarinheira que podemos encontrar em Portugal não nasce naturalmente em nenhum outro lugar do mundo a não ser ao longo da nossa costa atlântica e da espanhola, desde a Corunha, na Galiza, a Cádis, na Andaluzia.

As suas populações estão, assim, distribuídas ao longo de cerca de 1500 quilómetros costeiros, que vão desde Monte Branco, em Camariñas (Corunha), passando por todo o Portugal, até Punta Camarinal (Andaluzia). Os nomes destas terras espanholas revelam bem a relação de proximidade com este arbusto e a abundância que teria quando inspirou esta toponímia.

Em 1996, foi descoberta uma pequena população isolada, já bastante afastada do Atlântico, no Parque Natural de Serra Gelada (próximo de Benidorm, Valência), em plena costa mediterrânica. A descoberta desta população indicia que, no passado, a Corema album seria comum em mais áreas litorais e, embora não existam inventários que quantifiquem as alterações no número, dimensão e zonas das suas populações ao longo do tempo, há provas da redução da sua área de distribuição. Descobertas arqueológicas nas zonas onde os arbustos se encontram atualmente sugerem uma área de distribuição potencial bastante maior, que poderia abranger o Norte de África, parte do litoral mediterrânico espanhol, toda a costa norte de Espanha, entrando já pelo início da costa francesa, e o sul do Reino Unido.

Nas dunas e nas areias litorais, a camarinheira cresce muitas vezes sob as copas de pinheiro-bravo (Pinus pinaster), em comunidades arbustivas, que contam também com sabina-da-praia (Juniperus turbinata), tojo-chamusco (Stauracanthus genistoides), bocas-de-lobo (Antirrhinum majus), tomilho-carnudo (Thymus carnosus), sargacinha (Halimium calycinum), estevinha (Cistus salviifolius) e perpétua-das-areias (Helichrysum picardi).

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Corema album, por José Guimarães do Jardim Botânico UTAD, Flora Digital de Portugal

Uma espécie ameaçada e com alto valor de conservação

Nas últimas décadas, as populações de camarinheira continuaram a reduzir-se. Em 2002, só foram identificadas duas zonas com populações extensas e plantas de todas as classes etárias. De acordo com o estudo “A fragmentação como causa principal da redução do habitat de Corema album na sua área e distribuição”, uma das zonas estava entre Ovar e a Nazaré e a outra no Parque Natural espanhol Doñana, em Huelva, Espanha.

O mesmo estudo refere ainda uma outra população relevante em Portugal, nas Dunas de Troia, mas sublinha que “as outras populações estão limitadas a zonas de areia sobre arribas, como as populações da Costa Vicentina, ou estão reduzidas a fragmentos”, colocando neste último segmento as populações do Minho e Algarve, que estão “reduzidas a ilhas de areia sem regeneração natural” e são formadas por uma maioria de plantas velhas, que não sobreviverão sem medidas de proteção e de regeneração de habitats.

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Ovar © Camarinha Project

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Dunas de Troia

Em Portugal decorrem algumas iniciativas para proteger as camarinheiras, nomeadamente em Ovar, e para aumentar a sua presença em áreas onde as populações estão a desaparecer, como no Minho. São iniciativas que valorizam este património natural português e que estão em foco no artigo “Camarinha: uma espécie a conservar e multiplicar em Portugal”.

Existem também algumas referências locais sobre a redução da presença destes arbustos. No Minho, por exemplo, o Plano de Gestão Florestal da Mata Nacional do Camarido (Caminha), de 2010, referia um decréscimo da população de camarinhas, com base em dados obtidos entre 1995 e 2007 (mapa 2.11, Anexos). O mesmo documento indica que “Décadas atrás, em toda a sua extensão transversal, era possível cruzar a Mata até ao litoral, colhendo e saboreando ininterruptamente as bagas da camarinha”.

De resto, a observação e os diferentes níveis de reconhecimento entre as pessoas mais velhas e mais jovens permitem afirmar que a sua diminuição tem sido significativa nos últimos 30 a 50 anos. Para o declínio da espécie têm contribuído múltiplas pressões relacionadas com a atividade humana, que perturbam e fragmentam os habitats naturais da camarinha, nomeadamente:

  • Alterações climáticas, sobretudo pela promoção de condições para a proliferação de espécies invasoras, que ocupam áreas de matos, e para o aumento de incêndios. Embora a camarinheira seja capaz de rebentar naturalmente depois do fogo, a partir do caule (toiça), só consegue fazê-lo se estes ramos estriados se mantiverem enterrados na areia;
  • Más práticas de gestão florestal e dos matos, com utilização de equipamentos que pisam e arrancam o estrato arbustivo;
  • Desenvolvimento urbano e turístico, principalmente evidente em áreas costeiras.

Corema album

Apesar destas evidências, em Portugal não existe ainda uma avaliação da Corema album quanto ao seu risco de extinção, que permita classificá-la de acordo com os critérios da Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza.

Ainda assim, ela é uma das “Espécies autóctones, ameadas e com alto valor de conservação”, estatuto atribuído pelo Programa Operacional da Administração Pública para a Conservação e Melhoramento dos Recursos Genéticos Florestais, em 2018. Da mesma forma, as camarinhas estão integradas na vegetação do Habitat protegido 2250Dunas litorais com Juniperus spp. da Rede Natura (Habitat 2250 pt1 – Dunas e paleodunas com matagais de Juniperus turbinata subsp. turbinata).

Em Espanha, já na década de 80, a camarinheira foi considerada uma espécie “Vulnerável” na Lista Vermelha da Flora Vascular. Mais tarde, em 2004, foi avaliada em clara regressão na Galiza, pois só se verificava a sua presença em seis localidades. No Sul de Espanha, integra a Lista Vermelha da Flora Vascular da Andaluzia, também como “Vulnerável”.

Sabia que a camarinha ou camarinheira…

– Foi explorada pelos seus frutos desde o período Neolítico?

A camarinha já seria consumida na Península Ibérica há cerca de 6 mil anos. Os indícios desta presença vêm de textos antigos e de achados em escavações arqueológicas, como a de Cova de les Cendres, em Espanha, e o Sítio Neolítico de São Pedro de Canaferrim, em Sintra, por exemplo, onde foram encontrados vestígios das estruturas resistentes (os pirénios) que envolvem as sementes do fruto.

Até meados do século XX, em várias zonas do litoral, o consumo dos frutos era comum e chegaram a ser vendidos em bancas à beira das praias e em mercados locais. Pensa-se que tenham sido especialmente importantes na época da II Guerra Mundial para fazer face à escassez de alimentos.

Apesar de ser mais raro o seu consumo, as camarinhas continuam a ser valorizadas na gastronomia e há vários produtos feitos com elas. Temos, por exemplo, o Coremagin, um gin de camarinha, e o Licor de Camarinha Botica, ambos produzidos em Portugal.

– É reconhecida como uma planta com benefícios medicinais?

Considerada desde tempos antigos como antipirética e vermicida, a camarinheira – folhas e frutos – tem vindo a ser estudada para melhor compreender quais das suas propriedades se podem traduzir em benefícios para a saúde. Vários destes estudos têm sido prosseguidos por equipas de investidores portugueses (da Universidade de Coimbra e da Universidade Nova, por exemplo) e revelam que a planta tem compostos promissores, com potencial para integrar futuros medicamentos para doenças sem cura:

  • Os extratos das folhas revelaram propriedades antimicrobianas e anticancerígenas, que conseguem inibir a proliferação de células de cancro do cólon;
  • O extrato de folhas revelou ácidos fenólicos e flavonoides, com propriedades anticancerígenas promissoras para travar a progressão do cancro da mama triplo-negativo;
  • Foi identificado na camarinha um composto, a genipina, capaz de neutralizar os efeitos da deposição de uma proteína associada ao desenvolvimento da Doença de Parkinson.

Muitas destas investigações estão ainda nos passos iniciais e mais pesquisa será necessária para aprofundar e confirmar os conhecimentos revelados.

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Com um teor de humidade muito elevado, os bagos de camarinha são ricos em fibra (cerca de 40% da matéria seca) e têm baixo nível de proteína.

– É referida em antigas obras da literatura, assim como numa cantiga popular?

Em Portugal, foi referida várias vezes na Farsa de Inês Pereira, uma peça de Gil Vicente. O nobel espanhol Juan Ramón Jiménez, refere as camarinhas como “as pérolas das dunas que preencheram toda a minha infância”, na sua viagem poética “Platero y yo”, um livro com mais de um século.

Portuguesa é também esta antiga cantiga popular:

Fostes ao Senhor da Pedra
Minha rica Mariquinhas…
Nem por isso me trouxestes
Um ramo de camarinhas.

Hei de ir ao Senhor da Pedra
Para colher as camarinhas…
Mas, meu amor, é de lá
Já mas tinha apanhadinhas.

Fui ao mar às camarinhas
E cacei um camarão…

(coro)
Ai sim, camarinha, ai sim!
Ai sim, camarinha, ai não!
Ai sim, camarinha, ai sim!
Camarinha, ai sim!
Camarinha, ai não!

– Tem uma lenda associada?

A protagonista é a Rainha Santa Isabel, a compreensiva, mas infeliz mulher do Rei D. Dinis, que criou como seus filhos os vários bastardos que o marido levou para a corte. Reza a lenda que as camarinhas tiveram origem nas suas lágrimas, num dia em que foi à procura do Rei.

Dizem que Santa Isabel, Rainha de Portugal, montando branco corcel, percorria o seu pinhal!

– “Ai do meu Esposo! Dizei! Dizei-me, robles reais! Meu Dinis! Senhor meu Rei! Em que braços suspirais?!…

Os robles silenciosos, do vasto Pinhal do Rei, responderam receosos: Não sei!…

E o pranto da Rainha, nas suas faces rolava, regando a erva daninha, no pobre chão que pisava!

– “Ó meu Pinhal sonhador, que o meu Rei semeou! Dizei-me do meu Amor e se por aqui passou…”

Os robles silenciosos, do vasto Pinhal do Rei, responderam receosos: Não sei!…

Mas cristalizou-se o pranto, em muitas bagas branquinhas e transformou-se num manto de brilhantes camarinhas!…

Eis que repara a Rainha numa casa iluminada… – “Quem vela nesta casinha numa hora adiantada?!…”

Os robles silenciosos, tão tristes que nem eu sei, responderam receosos: O Rei!…

– Foi apelidada de tesouro nacional e fitomonumento?

Em 1815, José Bonifácio de Andrada e Silva, o primeiro técnico florestal português, recomendava a camarinha para o fabrico de vinagre a aguardente. Fê-lo naquele que é o primeiro livro português de Silvicultura, “Memória sobre a necessidade e utilidade do plantio de novos bosques em Portugal”:

– “… não devo esquecer-me de mencionar e recommendar muito huma planta arenosa, que por todos os titulos merece mui assignalada preferencia: he esta a Camarinheira, da qual temos duas variedades, huma de bagas inteiramente brancas; outra de cor tirando à purpurina.

– (…) Huma planta agreste, que defende o terreno da incursão das arêas moveis, que abriga as sementeiras, que vegeta ricamente no chão mais secco e estéril, e que além disto dá lucro certo com seus fructos espontâneos, he hum thesouro para o nosso Portugal.”

Mais recentemente, Carlos Pinto Gomes, Professor da Universidade de Évora, disse que ela “deve ser considerada um verdadeiro FITOMONUMENTO. Além do seu elevado interesse patrimonial esta maravilhosa planta foi sempre muito utilizada (e continua a ser) ao nível etnobotânico, nomeadamente ao nível medicinal por ser considerada antipirética e vermicida.”