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Produtos Silvestres

Os deliciosos cogumelos lactários que despontam no outono

O nome Lactarius deliciosus não engana. É um dos mais apreciados cogumelos de outono e, neste género de fungos, há mais delícias da culinária que despontam nas florestas portuguesas, entre pinheiros, castanheiros e carvalhos. Contudo, há também vários cogumelos lactários tóxicos e o seu aspeto pode ser tão apelativo como o das espécies comestíveis, pelo que há que ter cuidado.

Não se sabe ao certo quantas espécies de Lactarius existem no mundo, mas serão cerca de 400 as que estão identificadas globalmente pela ciência.  Encontram-se, sobretudo, no norte da Europa, América e Ásia, o que torna o género de cogumelos lactários (Lactarius) num dos mais proeminentes grupos de fungos com frutificações em todo o hemisfério norte. Todas estas espécies têm um elemento comum: quando algo lhes causa dano, libertam um líquido leitoso, um fenómeno que está na origem do nome Lactarius.

Em Portugal, apesar de o número de espécies de cogumelos Lactarius ser bastante menor, há mais de uma dezena identificada e boa parte é comestível. O Lactarius deliciosus é o mais valorizado na gastronomia, mas também podem ser consumidos outros, como, por exemplo, o Lactarius deterrimus, L. salmonicolor, L. sanguifluus e L. semisanguifluus.

Cardelas, míscaros ou níscaros, pinheiras, sanchas, raivacas, vacas-vermelhas, verdetes ou cogumelos lactários-deliciosos são alguns dos nomes atribuídos popularmente a esta espécie mais consumida, que frutifica principalmente no outono. Quer isto dizer que o seu pé e chapéu se desenvolvem e tornam visíveis quando as primeiras gotas de orvalho e de chuva “brindam” as terras com a sua humidade.

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Além de apreciados na gastronomia, os cogumelos Lactarius deliciosus são reconhecidos por vários benefícios medicinais: atividade antioxidante, antibacteriana, anti-hiperglicémica e efeito antitumoral, antifadiga e antienvelhecimento estão entre os mais estudados.

O seu chapéu é alaranjado, com variações de tonalidades que formam círculos concêntricos (entre o rosado, cor de cenoura e avermelhado). Quando jovem, o chapéu deste cogumelo tem uma forma plana a convexa, com a margem enrolada para baixo, mas ao crescer, cria uma depressão na zona central e pode tornar-se afunilado. Em adulto, o chapéu pode chegar aos 20 centímetros de diâmetro. O pé, laranja-pálido, apresenta pequenas depressões e manchas circulares. Pode ter entre 3 e 8 centímetros.

A sua carne, esbranquiçada no centro e laranja na periferia, é firme e compacta, embora quebradiça. Considerada muito boa, tem um sabor adocicado, com um gosto final um pouco acre.

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No interior de Portugal, a apanha de cogumelos lactários-deliciosos, que “podia ir de outubro aos Reis”, foi uma importante fonte de rendimento (formal e informal), nas décadas de 70, 80 e 90 do século XX: “Raro era o dia em que não apanhavam 30 a 40 Kg, mas podiam chegar a atingir os 100 Kg”, cita o engenheiro agrónomo Gravito Henriques, que recolheu testemunhos em aldeias do interior centro. “Toda a gente ia às raivacas, até os garotos”. A maioria do cogumelo seguia para Espanha, mas houve “(…) fábricas em Almeida, Trancoso e nas Alagoas a movimentar fresco e congelado, e outra no Sabugal que, para além da venda em fresco e congelado, tinha um secador e fazia algumas conservas”, contou um entrevistado, referindo que “fecharam ou foram desmanteladas nos finais dos anos 90”.

Descritos como iguarias ainda melhores do que os Lactarius deliciosus são os Lactarius sanguifluus, conhecidos como pinheiras e lactários-sanguíneos – que também despontam no outono.

O aspeto desta espécie é semelhante ao dos “deliciosos”, também com um chapéu de forma convexa a plana, que vai ganhando uma suave ondulação e depressão central com a idade. Ainda assim, é um cogumelo um pouco mais pequeno do que o anterior – entre 6 e 15 centímetros de diâmetro de chapéu – e que apresenta uma cor mais intensa: do laranja ou ocre alaranjado a cor-de-vinho, frequentemente manchado de verde.

Embora designados como excelentes para a culinária, os cogumelos lactários-sanguíneos são menos utilizados na gastronomia portuguesa. O principal entrave está relacionado com as manchas esverdeadas que lembram verdete e levantam suspeitas sobre a sua toxicidade.

Cogumelos lactários podem ter aparência enganadora, mas látex é distintivo

Esta aparência esverdeada engana, tornando a espécie L. sanguifluus receada e afastada do consumo humano, embora sem razão.

Quando são picados, feridos ou cortados, todos os cogumelos lactários exsudam um líquido leitoso (a que chamam látex) que, em alguns casos, se torna esverdeado ao entrar em contacto com o ar.

Embora isto aconteça em várias espécies comestíveis, incluindo no mais consumido lactário-delicioso, as manchas verdes do L. sanguifluus – e também do seu congénere L. semisanguifluus – podem ser amplas e intensas, dando-lhes uma aparência menos apetecível.

As cores destes exsudados podem, aliás, ajudar a reconhecer estas três espécies comestíveis, que estão entre as mais frequentes em Portugal, assim como a distingui-las das espécies tóxicas:

  • No deliciosus, o látex libertado é cor de laranja e tem um odor adocicado. Com o passar do tempo, este líquido espesso torna-se esverdeado, manchando em especial o pé e as lâminas sob o chapéu. Uns cortes no cogumelo, permitem perceber que a sua carne mantém o tom alaranjado que o caracteriza.
  • No sanguifluus, o látex tem um tom entre o vermelho sangue e a cor de vinho. É daí que vem o seu nome, do latim para “aquele que sangra”. Ao corte, a sua carne é cor de laranja, mas em poucos minutos recupera o tom mais escuro.
  • No semisanguifluus, o látex, embora menos abundante, também se altera de um laranja vivo para um vermelho escuro vínico, ganhando depois tonalidades esverdeadas ou acinzentadas que mancham a superfície. Ao corte, o tom escuro do vinho permanece na sua carne.
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Também comestíveis e semelhantes são o Lactarius deterrimus e o L. salmonicolor.

No primeiro, o látex é cor de cenoura, evoluindo para a vermelho-escuro e manchando o cogumelo de verde.

No segundo, o látex alaranjado também muda de cor, para acinzentado, escurecendo a superfície do cogumelo após algumas horas.

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Estas características são principalmente relevantes para diferenciar entre espécies de cogumelos lactários comestíveis e tóxicas. Estas últimas também existem em Portugal e têm, em muitos casos, um aspeto semelhante, que facilmente pode levar a enganos: L. chrysorrheus, L.  acerrimus, L.  zonarius e L. tesquorum são exemplos.

Têm sido identificados casos de mal-estar em Portugal, mesmo entre pessoas habituadas a colher cogumelos, e o consumo das espécies L. chrysorrheus e L. tesquorum parece ser a principal razão. Dores abdominal e de cabeça, vómitos e diarreia são alguns dos sintomas reportados.

O L. chrysorrheus (na foto) distingue-se especialmente pelo abundante látex branco que exsuda quando sofre danos: quando o cortamos, esta secreção branca passa, rapidamente, a amarelo enxofre, manchando a carne do cogumelo de amarelo. Apesar de haver outras características distintivas, esta é a mais fácil de identificar.

O látex libertado pelos L. acerrimus, L. zonarius e L. tesquorum também é branco e este último cogumelo tem outra característica distintiva: uma penugem a cobrir-lhe o chapéu.

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Um pacto de entreajuda entre os cogumelos lactários e as coníferas

Comestíveis ou não, todos estes cogumelos lactários têm um importante papel ecológico e são especialmente relevantes para um vasto conjunto de espécies de árvores e arbustos, com os quais vivem em simbiose, como se tivessem estabelecido um silencioso pacto de entreajuda.

Trata-se de fungos ectomicorrízicos, em que o micélio (teia de finos filamentos que permite o desenvolvimento dos fungos) envolve o exterior das raízes de diferentes espécies arbustivas e arbóreas, promovendo a troca de nutrientes. O fungo fornece às plantas hospedeiras água e elementos como o azoto e o fósforo e, em troca, recebe açúcares e outros compostos orgânicos gerados na fotossíntese.

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Embora possam ser encontrados em florestas mistas de coníferas e folhosas – espécies com folhas em forma de agulha, como os pinheiros, e de folha larga, como os castanheiros (Castanea sativa) e carvalhos (Quercus spp.) – é com as coníferas que estas espécies de cogumelos mantêm relações mutuamente benéficas.

Em Portugal, a associação dos lactários acontece essencialmente com pinheiro-bravo (Pinus pinaster) e pinheiro-manso (Pinus pinea), os dois Pinus mais comuns no nosso país.

A exceção entre os comestíveis já identificados em Portugal vai para o Lactarius deterrimus e Lactarius salmonicolor, que se associam, respetivamente, com píceas (Picea spp.) e abeto-branco (Abies alba). Estas espécies florestais são menos frequentes no nosso país – nativas das zonas mais frias, a norte – razão pela qual estas duas espécies de cogumelos lactários são menos conhecidas entre os coletores e apreciadores de cogumelos.