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Gestão Sustentável

Engenharia florestal: os desafios e oportunidades da silvicultura

O ensino dos conhecimentos e técnicas florestais começou no século XVIII, mas muito mudou desde então. A silvicultura – ciência e engenharia florestal – tem hoje objetivos amplos e coloca, a quem segue esta área de estudo e trabalho, desafios e oportunidades que muitos desconhecem. Pedro Barcik ajuda a desvendá-los.

Passaram mais de 250 anos desde os programas iniciais de ensino de silvicultura aos atuais cursos superiores de ciência e engenharia florestal. Os primeiros passos no ensino desta “arte” foram dados por necessidade, para responder à intensa destruição das florestas e à consequente falta de madeira que se intensificava na Europa. A população urbana começava a aumentar e a madeira tornava-se escassa, tanto para a construção, como para o aquecimento e a confeção de alimentos, dependentes deste recurso natural.

Estas necessidades eram críticas em muitos locais, incluindo no território que é hoje a Alemanha e foi ali que se criaram as primeiras “escolas de mestres” silvicultores, fundadas em 1763. Já antes tinham sido feitas várias tentativas de regeneração de zonas de floresta e estabelecidos planos de reflorestação em algumas regiões, inclusive com espécies vindas de outros locais do mundo, cujo crescimento mais rápido apoiava a urgência em obter madeira.

Nestas primeiras “escolas de mestres”, um pequeno conjunto de aprendizes seguia um mestre, reconhecido como especialista florestal, aprendendo com ele as responsabilidades e técnicas da silvicultura. Viviam em comunidade e esta proximidade facilitava aos jovens aprenderem com as atividades do mestre, que apoiava e avaliava os seus pupilos, para saber se tinham (ou não) as capacidades necessárias para se profissionalizarem.

À medida que se ampliavam os conhecimentos da silvicultura, surgiu a necessidade de formalizar a educação florestal e as primeiras escolas de silvicultura, ligadas a estabelecimentos públicos de formação ou ensino, surgiram em 1790, também na Alemanha, em Munique. Seguiram-se várias outras: em 1803, em São Petersburgo (Rússia), em 1813, em Mariabrunn (Áustria), e em 1825, em Nancy (França).

Alemanha e França acabaram por se tornar os principais centros da silvicultura da Europa e a referência a nível internacional. No entanto, a visão que vigorava estava longe da atual: mantinha-se puramente extrativista, focada nos procedimentos orientados à produção de madeira e não abarcava a complexidade dos ecossistemas florestais, nem a amplitude de conhecimentos e temáticas que estão atualmente integrados na engenharia florestal.

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A madeira moldou a história das sociedades humanas. Foi – e continua a ser – essencial: mais madeira é utilizada globalmente do que, por exemplo, trigo, milho ou arroz. Como fonte dessa matéria-prima, as florestas sofreram pressão crescente ao longo dos tempos. A ideia de manter a sustentabilidade das florestas só se consolidou no século XIX, na Europa e, na época, a continuidade da produção de madeira mantinha-se como objetivo. A sustentabilidade e equilíbrio ecológico da floresta são conceitos da segunda metade do século XX e o objetivo de produzir madeira sem desflorestar as áreas naturais data também desse século.

A abrangência da moderna engenharia florestal

Compreender a importância das florestas nas suas múltiplas dimensões, como fonte de recursos, mas também de serviços essenciais, conhecidos como serviços dos ecossistemas, foi essencial para que se transitasse da visão inicial para a perspetiva mais abrangente que hoje prevalece. Assim, a engenharia florestal olha atualmente para as quatro principais categorias de serviços originados nos ecossistemas florestais, que constituem a base do equilíbrio e saúde global, tanto do planeta como nosso:

– Serviços de provisão, que correspondem, por exemplo, à produção de madeira, cortiça, frutos, plantas medicinais, entre outros;

– Serviços de regulação, visíveis no papel que as florestas desempenham na regulação do clima e na purificação da água;

– Serviços culturais, como a função recreativa, educacional e espiritual das florestas;

– Serviços de suporte, correspondentes, por exemplo, à formação do solo e à ciclagem de nutrientes.

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Em paralelo, incêndios, secas, espécies invasoras, pragas e doenças têm aumentado à medida que os efeitos das alterações climáticas se intensificam globalmente. Estes distúrbios, cada vez mais severos, colocam em risco os valiosos e essenciais serviços e produtos que as florestas nos proporcionam e requerem um conhecimento multidisciplinar por parte dos profissionais dedicados à gestão florestal (reforçando ainda mais a amplitude das temáticas necessárias à engenharia florestal).

Assim, um engenheiro florestal não se preocupa apenas com a produção de madeira. As suas áreas de aprendizagem incluem também outros produtos da floresta e os serviços que, tradicionalmente não eram objeto de transação (não monetizáveis), mas que são muitas vezes considerados o objetivo principal da gestão de uma floresta, como a conservação e proteção de habitats ou até mesmo o seu valor estético e potencial turístico.

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Atualmente, vários produtos florestais (além da madeira) são alvo de valorização. Em Portugal, a cortiça é o exemplo mais conhecido e constitui a principal fonte de rendimento para muitos proprietários agroflorestais. Noutros locais, outros produtos sobressaem: na região espanhola da Catalunha, por exemplo, o valor comercial dos cogumelos silvestres pode exceder 32 milhões de euros e o lucro que geram pode até ser mais elevado do que o obtido com a madeira.

O currículo da engenharia florestal: da biologia à programação

Os cursos superiores de engenharia florestal (e similares) baseiam-se, assim, num currículo multifacetado, composto por disciplinas que contribuem, tanto para o conhecimento técnico da floresta, como para as aptidões de gestão. Tais disciplinas podem ser categorizadas como básicas, intermediárias e aplicadas.

A vertente básica concentra-se geralmente no início dos cursos e estabelece um fundamento sólido para o que será ensinado posteriormente. “Embora esta vertente seja essencial, como é teórica e se ensina logo no início, nem sempre é bem compreendida pelos estudantes que procuram mais praticidade e especificidade. Alguns entram com a expectativa de aprenderem algo que possam aplicar o mais rápido possível”, diz Pedro Barcik, que completou a licenciatura em “Engenharia Florestal e dos Recursos Naturais”, no ISA – Instituto Superior de Agronomia.

As disciplinas que compõem essa parte inicial são a biologia (várias componentes: biologia celular, microbiologia, botânica, zoologia), química (inorgânica, orgânica, bioquímica), física, ciências sociais e matemáticas (a matemática é uma parte importante dos cursos de engenharia e este não é exceção). Apesar do receio que as matemáticas inspiram a alguns, “devem ser reconhecidas e tratadas como uma ferramenta importante para a resolução de problemas e para o pensamento lógico, ambas competências muito desejadas num engenheiro florestal”, refere.

Mais ou menos pela metade do curso – ou muitas vezes ao longo dos vários períodos escolares –, começam as disciplinas intermédias. “São disciplinas que entrecruzam conceitos das ciências básicas e, muitas vezes, são utilizadas como meios ou ferramentas que poderemos usar para atingir determinados objetivos”, explica Pedro. Entre elas estão ecologia, fisiologia vegetal, ciência dos solos, climatologia e meteorologia, hidrologia, economia, ciência de dados e programação, cartografia e topografia, sistemas de informação geográfica e inventário florestal.

Na metade final do curso, o conhecimento começa a interligar-se e passa a especializar-se na área florestal. É nessa altura que começam as disciplinas como a silvicultura, modelação florestal, cinegética e aquicultura, pragas e doenças florestais, fogos rurais, operações florestais, tecnologia dos produtos florestais (madeira, cortiça e derivados), gestão e certificação florestal, e políticas florestais.

O currículo de engenharia florestal abrange várias áreas do conhecimento, interliga-as e aplica-as para otimizar a gestão das florestas. Dada essa grande variabilidade de disciplinas, são múltiplas as áreas em que um engenheiro florestal pode trabalhar. Conheça mais sobre os cursos superiores e oportunidades profissionais relacionados com a floresta, num seminário com a professora e investigadora Conceição Santos.

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Gostar da natureza, estudá-la, compreendê-la e estar junto dela, é essencial no perfil de um engenheiro florestal, mas a grande variedade de disciplinas e temáticas abordadas traduz-se numa flexibilidade que não se encontra em muitas outras áreas. Trabalho de campo, de gabinete (em papel ou no computador) e de laboratório (nos casos de especialização em genética ou fisiologia, por exemplo) exemplificam esta versatilidade, que dá resposta a diferentes expectativas e perfis.

As saídas profissionais de um engenheiro florestal

Com a ampla gama de disciplinas presentes no currículo, é natural que os engenheiros florestais possam ter funções variadas. Ainda assim, a área do planeamento e gestão sustentáveis de povoamentos florestais, com objetivos de produção (madeira ou cortiça, por exemplo), é uma das mais comuns na carreira tradicional dos engenheiros florestais. É também uma área com bastante procura, por parte de associações de produtores florestais, de empresas privadas e até do Estado (Matas Nacionais submetidas a regime florestal, sob gestão do ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, por exemplo).

Como gestores florestais, utilizam conhecimentos de silvicultura para criar planos de gestão da floresta e decidir as melhores práticas a seguir; e no campo, podem implementá-las, supervisionando ou executando as operações florestais.

Hoje, mesmo nestas áreas geridas com o objetivo principal de produção, a gestão sustentável (designadamente a gestão florestal certificada) concilia vários outros propósitos, que incluem a conservação dos recursos naturais. Neste sentido, também nestas áreas de floresta os engenheiros florestais têm entre as suas funções:

– Proteger as florestas contra os incêndios rurais. A criação de aceiros (faixas sem vegetação, para compartimentação e circulação) e a gestão de biomassa florestal (combustível que alimenta o fogo) no subcoberto, com recurso a máquinas ou fogo controlado, são algumas das técnicas que planeiam e implementam. No terreno, estas funções são muitas vezes postas em prática por técnicos e sapadores florestais, mas a defesa da floresta contra incêndios é uma responsabilidade partilhada pelos engenheiros florestais. Esta é, aliás, uma das responsabilidades dos Gabinetes Técnicos Florestais que existem nas autarquias de norte a sul.

– Determinar áreas com elevado valor natural, que ficam reservadas à conservação da flora e fauna silvestres. Podem, por exemplo, estabelecer zonas onde as máquinas florestais não circulam ou corredores ecológicos essenciais para a movimentação, alimentação e reprodução de determinadas populações de espécies. Nestas áreas, a atividade humana será reduzida ao mínimo indispensável para manter ou melhorar as condições de habitat destas espécies, que podem até incluir animais classificados como “Em Perigo”, como o lince-ibérico (Lynx pardinus) e a toupeira-de-água (Galemys pyrenaicus), ou “Vulneráveis”, como a marta (Martes martes).

– Atuar na proteção e conservação dos recursos abióticos (não biológicos) presentes nas florestas, como a água e o solo. Entre as suas funções pode estar a proteção da qualidade e quantidade da água em albufeiras ou a proteção de rios e ribeiras contra a erosão, os quais podem beneficiar da aplicação de conceitos de engenharia natural, por exemplo. Da mesma forma, podem trabalhar em prol da conservação e proteção do solo, combatendo a erosão com diversas técnicas e práticas, incluindo a plantação de arbustos e árvores (cujas raízes ajudam a suster o solo), ou da sua beneficiação, por exemplo, através do reforço em matéria orgânica.

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Os engenheiros florestais podem também atuar na gestão dos recursos cinegéticos e aquícolas, participando na formulação de zonas de caça e pesca em contexto florestal ou agroflorestal, e monitorizando a evolução destes recursos, como a abundância dos animais, por exemplo. Das suas funções, podem fazer parte a definição dos períodos em que é possível caçar ou pescar, assim como a proibição de caçar e pescar determinadas espécies – por exemplo, quando as populações são reduzidas ou se trata de espécies protegidas.

Nas indústrias de base florestal, muitas vezes, o especialista em produtos – seja madeira, compósitos de madeira, pasta para papel ou cortiça – é um engenheiro florestal que se especializou na área em questão. Pode verificar a qualidade dos produtos, tanto numa fase inicial como final, acompanhar a transformação e coordenar toda a cadeia de produção. Além disso, pode integrar os processos de inovação, sejam eles novos produtos ou processos produtivos.

As áreas arborizadas urbanas também beneficiam dos conhecimentos de um engenheiro florestal. Dado o reconhecimento crescente da importância que as áreas verdes têm nas cidades, os engenheiros florestais devem trabalhar em conjunto com arquitetos paisagistas para planear e gerir as florestas urbanas ou as árvores em meio urbano. Cabe-lhes, por exemplo, decidir quais as espécies florestais mais adaptadas aos locais em causa e que operações são necessárias para melhor as acomodar ao meio urbano (e vice-versa).

A área da investigação científica e tecnológica, a par do ensino, é outra das que pode ser potenciada. Em quase todas as áreas da engenharia florestal existe potencial de especialização, o que estimula a inovação e moderniza técnicas e práticas florestais. E as florestas têm beneficiado das novas tecnologias e dos conhecimentos que decorrem da sua aplicação e cruzamento (desde dados recolhidos por drones e satélite à robótica), sendo esta uma vertente cada vez mais necessária para acompanhar as tendências de um mundo em rápida mudança.

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Muitas outras funções poderiam integrar esta lista, desde a coordenação de programas de controle de pragas e doenças à consultoria e auditoria (por exemplo, na área da certificação da gestão florestal), passando pelo desenvolvimento de sistemas de informação geográfica, pelo tratamento de dados, pela elaboração de inventário ou pela supervisão de operações em viveiros florestais.

Alterações climáticas, tecnologias e inovação

Entre os principais desafios do engenheiro florestal, um sobressai: tentar amenizar os efeitos das alterações climáticas e gerir as suas consequências. À medida que a consciência da sociedade aumenta sobre os problemas associados às alterações climáticas e ao uso da terra, mais os conhecimentos dos engenheiros florestais serão necessários. Mas as incertezas que essas alterações trazem farão com que a gestão das paisagens florestais seja consideravelmente mais complexa.

Também nesta vertente, as tecnologias de ponta serão ferramentas essenciais para complementar o “arsenal” do engenheiro. Por exemplo, a utilização de drones equipados com diferentes tipos de sensores permite avaliar remotamente vários parâmetros das florestas, como a sua biomassa, o seu stress hídrico e outros indicadores do seu estado de saúde, por exemplo. Além disso, a “digitalização da floresta”, com a utilização de tecnologias como a “Internet das Coisas” (Internet of Things), permite a monitorização em tempo real das florestas, desde a ocorrência de fogos ao acompanhamento da plantação e colheita. A capacidade de recolha e tratamento de grandes volumes de dados, com sistemas de informação dedicados, será crítica para as decisões de gestão.

Inovação é uma palavra que define bem o sector florestal, já que o engenheiro florestal está sempre a procurar novas formas de lidar com desafios. E como vários desafios se agigantam, a capacidade de inovar será ainda mais vantajosa nesta profissão. “Oportunidades não faltam, nem faltarão, para os engenheiros florestais, uma vez que a função deles se tornará cada dia mais relevante. São tempos muito oportunos para o engenheiro florestal”, conclui Pedro Barcik.

*Artigo em Colaboração

Pedro Augusto Barcik

Pedro Augusto Barcik é aluno do Mestrado em Engenharia Florestal e dos Recursos Naturais no ISA – Instituto Superior de Agronomia, Universidade de Lisboa, assim como bolseiro do projeto Corknut. Em 2023 integra a APEF – Associação Portuguesa de Estudantes Florestais e é o diretor da revista oficial da associação, a Quercínea.