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Água

Redução de recursos hídricos subterrâneos afeta ecossistemas terrestres

A disponibilidade das águas subterrâneas é crucial para o equilíbrio dos ecossistemas terrestres, mas estes recursos hídricos subterrâneos estão a reduzir-se. Saiba porquê neste artigo em colaboração com Cristina Antunes, que alerta: a gestão integrada das águas subterrâneas é essencial para o seu uso sustentável e para reduzir os impactes negativos da sua diminuição.

Quando pensamos em água doce, a primeira imagem que nos ocorre são rios e lagos. Contudo, a maior parte da água doce do planeta encontra-se retida em icebergs e glaciares sob a forma de gelo (nas zonas polares) e armazenada sob a forma líquida em áreas subterrâneas. É destes recursos hídricos subterrâneos que depende, em larga medida, a vida à superfície.

As águas subterrâneas são um recurso hídrico fundamental. Constituem cerca de 99% da água doce em estado líquido – o restante 1% corresponde às águas superficiais de lagos, rios e outros cursos de água – e são elas que moldam e sustentam os vários ecossistemas terrestres.

A importância dos recursos hídricos subterrâneos é globalmente reconhecida, já que eles contribuem para gerar benefícios sociais, económicos e ambientais, e torna-se ainda mais evidente no atual contexto de adaptação às alterações climáticas. Indispensáveis ao uso doméstico, agrícola, industrial e geotérmico, as águas subterrâneas têm uma função reguladora da disponibilidade de água doce entre as estações do ano e também uma função estabilizadora da temperatura, do fluxo disponível e da qualidade da água.

recursos hídricos subterrâneos

Os recursos hídricos subterrâneos são ainda a fonte que alimenta nascentes, ribeiros e zonas húmidas, suportando a diversidade de vida nessas áreas, assim como a estabilidade do terreno. Acresce uma função cultural e recreativa através, por exemplo, das estâncias termais e do enquadramento paisagístico que rios, lagos ou lagoas proporcionam.

São, assim, variados os serviços de ecossistema proporcionados pelos recursos hídricos subterrâneos, destacando-se as seguintes categorias definidas pelo Millennium Ecosystem Assessment:

Provisão (ou aprovisionamento):

  • Água para uso doméstico
  • Água para rega/irrigação
  • Água para uso industrial
  • Engenharia geotérmica

Regulação:

  • Buffer entre períodos secos e húmidos
  • Redução da erosão
  • Regulação da química e temperatura da água
  • Purificação da água

Suporte:

  • Nascentes
  • Fluxo de rios
  • Habitats e biodiversidade
  • Da vida no subsolo
  • Da estabilidade da superfície terrestre

Culturais:

  • Água mineral
  • Nascentes termais
  • Serviços de lazer
  • Valores espirituais e águas sagradas

A redução dos recursos hídricos subterrâneos influencia muitos ecossistemas terrestres. Seja de forma direta, pelo uso como fonte de água, ou indireta, por influência nas propriedades do habitat, a variação de água subterrânea condiciona, em grande parte, a capacidade de crescimento das plantas. Daí dizer-se que a distribuição, composição, vitalidade e estrutura das comunidades vegetais, incluindo das florestas, são influenciadas pela disponibilidade de água subterrânea.

Como os restantes recursos naturais do planeta, a disponibilidade destes recursos hídricos subterrâneos tem sido afetada pelas alterações climáticas, pela redução da precipitação ou a sua ocorrência de forma torrencial, e pela utilização humana, por exemplo, através do aumento de áreas irrigadas.

A crescente redução dos níveis das águas subterrâneas levanta maiores preocupações em regiões com uma estação seca bem demarcada, como as de clima mediterrâneo. Esta região é apontada como particularmente vulnerável a secas hidrológicas, ou seja, ao défice de humidade do solo e de águas subterrâneas, a que acresce a pressão de uma elevada procura por água para irrigação e abastecimento público.

A limitação afeta diretamente as espécies e os ecossistemas dependentes da água subterrânea (EDAS, em inglês GDE – Groundwater Dependent Ecosystems) pelo que, no contexto da crescente escassez de água, a importância deste recurso natural não pode ser negligenciada. Para promover o seu uso sustentável é preciso compreender a dinâmica dos recursos hídricos subterrâneos e os vários processos ecológicos em que esta água está envolvida. É este o objetivo da ecohidrologia: usar o conhecimento sobre as relações entre processos biológicos e hidrológicos, a diferentes escalas, para melhorar a segurança da água, assim como para promover a biodiversidade e o desenvolvimento sustentável, diminuindo as ameaças ecológicas.

Refira-se que o conceito de “Ecohidrologia” foi introduzido na década de 1990, pela UNESCO, ao abrigo do International Hydrological Programme (IHP), com o objetivo de aprofundar e encontrar soluções para o declínio da disponibilidade global de água, declínio este que envolve elevada complexidade de causas e efeitos interdependentes. A ecohidrologia tornou-se, assim, na ciência que integra os conhecimentos da hidrologia e da ecologia, criando uma abordagem mais ampla para a compreensão dos impactes associados à dinâmica dos recursos hídricos nos ecossistemas.

Principais interações entre recursos hídricos subterrâneos, clima e ação humana

Fonte: baseado em Taylor et al. 2012

recursos hídricos subterrâneos

Os ecohidrologistas que estudam sistemas terrestres (como florestas e savanas) focam-se nas interações entre a vegetação, a zona superficial do solo (zona vadosa, de arejamento) e as águas subterrâneas. Usam o conhecimento sobre as relações entre os processos hidrológicos e biológicos em diferentes escalas para melhorar a disponibilidade hídrica, aumentar a biodiversidade e promover o desenvolvimento sustentável, diminuindo as ameaças ecológicas e maximizando o uso equilibrado da água doce.

A influência humana e climática na redução dos recursos hídricos subterrâneos

Em geral, como a recarga das águas subterrâneas depende em larga medida da precipitação, é expectável que o aumento da variabilidade nos padrões de chuva afete a dinâmica deste recurso hídrico subterrâneo, mas a sua disponibilidade é afetada também pelas características do solo e pelos padrões de uso humano.

O aumento da extração de água subterrânea para uso doméstico e irrigação, por exemplo, acompanhado pela redução da recarga, pela diminuição das chuvas, pode afetar significativamente os níveis dos recursos hídricos subterrâneos. E os períodos de seca vão aumentar a procura por água, reduzindo as reservas. Assim, nos cenários traçados para as mudanças climáticas, antecipa-se a redução do nível das águas subterrâneas em várias partes do globo.

Em várias zonas do globo antecipa-se a redução do nível freático. Em áreas com maior aridez, como o sul da Península Ibérica, a pressão sobre os recursos hídricos subterrâneos é alta e a escassez hídrica prevista é elevada.

Áreas vulneráveis à variação e recursos hídricos subterrâneos: padrões globais e ibéricos

recursos hídricos subterrâneos
recursos hídricos subterrâneos

Fonte: com base em “The United Nations World Water Development Report 2022: groundwater: making the invisible visible”, e em mapas disponibilizados pela Agência Europeia do Ambiente: Diminuição de água subterrânea, Índice de exploração de água e Stress hídrico.

O esgotamento da água subterrânea ocorre quando a saída de água (descarga) excede a entrada de água (recarga). Embora a variabilidade e mudança climáticas (nomeadamente a redução da precipitação) desempenhem um papel importante nesse processo, a maioria dos casos de esgotamento de longo prazo das reservas de água subterrânea resulta da sua captação humana intensiva e insustentável. Pelas mesmas razões, o aumento da escassez de água regista-se em diversas regiões do mundo.

Em Portugal, 42,7% do total (bruto) de água doce captada é proveniente das reservas subterrâneas (2017). Em áreas com climas semiáridos, como acontece em zonas do Alentejo e Algarve, a pressão sobre os recursos hídricos subterrâneos é elevada e a escassez de água uma realidade visível.

Do ponto de vista ecológico, a diminuição deste importante recurso hídrico pode afetar os ecossistemas terrestres a vários níveis, desde a alteração de propriedades do habitat e a perda de espécies, à alteração da estrutura e funcionamento do sistema, culminando na perda irreversível de comunidades e serviços do ecossistema.

Outra questão premente é a poluição da água subterrânea e a intrusão salina em zonas costeiras, que reduz a adequação da água captada para fins de consumo e afeta os ecossistemas dependentes dos recursos hídricos subterrâneos.

Embora se tenha feito um esforço considerável de investigação científica sobre as secas decorrentes de períodos prolongados com pouca precipitação, tem sido dada menos atenção à diminuição das reservas de água subterrânea nos ecossistemas. A dinâmica espácio-temporal dos recursos hídricos subterrâneos pode alterar o balanço hídrico do ecossistema e, consequentemente, o crescimento das plantas, a biodiversidade e a produtividade das florestas. Os impactes da variação da disponibilidade das águas subterrâneas na vegetação e as consequências que geram ainda não foram profundamente estudados, nem totalmente integrados na gestão dos recursos hídricos. Assim, perceber como a dinâmica hidrológica influencia as florestas e condiciona a sobrevivência da vegetação é um desafio urgente e necessário.

Gestão integrada da utilização das águas subterrâneas

O efeito combinado da escassez da água no solo e da redução das reservas de água subterrânea tem promovido o declínio de vitalidade de vários tipos de plantas, principalmente pelo aumento do stress hídrico causado, ou seja, da crescente carência da água de que necessitam para crescer. As plantas que mais dependem dos recursos hídricos subterrâneos como fonte principal de água vão, provavelmente, responder negativamente ao declínio do nível freático, com a redução do seu crescimento, da sua vitalidade e, eventualmente, com o aumento da mortalidade.

A contribuição da água subterrânea tem maior magnitude em zonas de maior aridez e o seu uso pelas plantas é, em geral, mais elevado nos locais onde a estação seca é mais pronunciada. Estima-se que, em zonas de matos resistentes à secura (matos xéricos), desertos, florestas mediterrâneas, pradarias montanhosas, savanas tropicais e florestas ribeirinhas, mais de 40% da água que as plantas devolvem à atmosfera por transpiração tenha origem nas águas subterrâneas.

Os impactes da variação das águas subterrâneas na vegetação dependerão não apenas dos fatores temporais e das condições locais, mas também da capacidade de resposta das plantas. Por exemplo, a diminuição da água de um lençol freático numa comunidade vegetal em equilíbrio, que usa esta água como fonte principal, pode não implicar efeitos negativos ao nível da comunidade, pela resposta dessas plantas. Esta resposta adaptativa pode passar pelo desenvolvimento das suas raízes em profundidade, para conseguirem chegar a outra fonte de água subterrânea disponível, ou pelo fecho dos poros (estomas) das suas folhas para reduzir a transpiração e, assim, ou escapar a um período de stress hídrico.

Estes ajustes ecofisiológicos – adaptação do consumo, de retenção da água e da regulação do crescimento – permitem que algumas espécies sustentem a eficiência do uso de recursos em condições de variação dos níveis de águas subterrâneas. Há, no entanto, espécies que não são capazes de fazer mudanças suficientes ou suficientemente rápidas. Por exemplo, se o ajuste das raízes é demasiado lento ou inexistente ou se os estomas se fecham durante demasiado tempo para manter o seu funcionamento fisiológico, aumenta a probabilidade de não sobreviverem.

As interações entre clima, uso humano, ciclo hidrológico e capacidade de resposta da vegetação definirão o desempenho e a composição da comunidade vegetal. No entanto, de forma semelhante às estratégias para enfrentar períodos de seca, existem custos e limites para os benefícios que proporcionam os processos de aclimatação às mudanças que se registam nas águas subterrâneas.

Consequências da redução da disponibilidade de água subterrânea em sistemas terrestres: declínio do estado ecológico de um ecossistema

recursos hídricos subterrâneos

O bem-estar conjunto dos recursos hídricos subterrâneos, ecossistemas e seres humanos pode ser promovido através de uma gestão integrada. Embora a gestão geralmente se concentre nas próprias águas subterrâneas ou aquíferos, águas subterrâneas e ecossistemas precisam ser considerados e geridos em conjunto, para garantir a sua sustentabilidade e a prestação contínua de serviços do ecossistema essenciais.

Na União Europeia, a Estratégia para a Biodiversidade e a Estratégia de adaptação às mudanças climáticas denotam a necessidade de preservar os fluxos ecológicos e de regular a captação de águas subterrâneas. A Diretiva-Quadro da Água fornece uma estratégia abrangente para gerir as águas europeias de forma sustentável (tanto as superficiais como subterrâneas), garantindo um bom estado quantitativo e qualitativo.

A adaptação de soluções baseadas na natureza (mais semelhantes aos processos naturais), a monitorização de níveis freáticos e do estado da vegetação, as estratégias de gestão de recarga de aquíferos (referidas, por exemplo, como MAR – do Inglês Managed Aquifer Recharge), a elaboração de planos locais envolvendo vários sectores de conhecimento, e o desenvolvimento de medidas de proteção de ecossistemas (assinalando áreas chave de proteção para ecossistemas e comunidades vegetais dependentes da água subterrânea e mais vulneráveis à sua variação), são formas de promover o equilíbrio entre o uso humano e a conservação de ecossistemas.

*Artigo em colaboração

Cristina Maria Nunes Antunes

Cristina Antunes formou-se em biologia, na Faculdade de Ciências, da Universidade de Lisboa (FCUL) e doutorou-se em ecologia na Universidade de Campinas (Brasil) em 2018. Tem desenvolvido a sua atividade profissional no âmbito da Ecologia Vegetal, dedicando-se a estudos de ecofisiologia e ecohidrologia, com particular interesse nas respostas das florestas costeiras às alterações das águas subterrâneas. Participa em vários projetos de investigação no cE3c – Centro para a Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais, da FCUL, e é coautora de 14 artigos científicos em revistas com reconhecido prestígio internacional.